resenha da correspondência delfim santos / jorge de sena

EPISTOLOGRAFIA: Jorge de Sena e Delfim Santos, CORRESPONDÊNCIA 1943-1959

Organização. estudo introdutório e notas de Filipe Delfim Santos, Lisboa. Guerra e Paz / 2012

É a propósito de um livro emprestado, devolvido com uma breve nota de agradecimento, que tem início a troca de cartas entre Jorge de Sena e Delfim Santos. O livro era um Wittgenstein, cuja filosofia da linguagem bem poderia servir de simbólica ponte a ligar o professor e filósofo Delfim Santos ao poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta – homem de Letras – Jorge de Sena. Neste caso, porém, é o próprio ato de emprestar que serve de mote feliz a uma amizade que se foi fazendo à volta de tertúlias literárias e reuniões culturais, afinidades estéticas e ideológicas, e de uma convivência intelectual profícua que, nos anos 1940/50, representava, por si só, atitude de resistência numa sociedade submetida à censura e ao isolamento, em que se faziam tanto mais necessários os debates, as discussões, o intercâmbio de opiniões e de textos.

Desses esforços dão testemunho os 29 documentos – entre cartas, dedicatórias, inquéritos literários e entradas de diário -, datados de 1943 a 1959, que compõem essa recolha de correspondência, enriquecida ainda por uma secção de Anexos. Esta arrola textos de não menor interesse, como reportagens publicadas no Diário de Lisboa acerca dos debates sobre Arte e Filosofia, e mais tarde Cinema, promovidos pelo Jardim Universitário de Belas-Artes (JUBA), em que Jorge de Sena e Delfim Santos participaram (ao lado de outros importantes intelectuais e artistas portugueses, como José-Augusto França, Almada Negreiros, Mário Cesariny); a «Súmula das Respostas ao Inquérito sobre André Gide», proposto por Sena e respondido por Santos (fazendo parte da correspondência o convite, a aceitação entusiasmada e as preciosas respostas); e o que ambos responderam ao «Inquérito sobre como vivem os intelectuais portugueses a sua relação com a cultura passada em Portugal», dirigido por Eduardo Lourenço.

O volume é apresentado por Mécia de Sena, viúva do escritor e grande embaixadora da sua obra, e tem organização, estudo introdutório e notas (necessárias, competentes e interessantíssimas) de Filipe Delfim Santos, filho do filósofo e responsável pelo Arquivo Delfim Santos, que, num empreendimento continuado e bem sucedido, vem divulgando seus estudos filosóficos e suas importantes e revolucionárias – embora nem sempre reconhecidas – ideias sobre a Educação, e publicando seus textos inéditos, com destaque para a correspondência que manteve com uma série de nomes da intelligentsia portuguesa. Como destaca José-Augusto França na «Nota Complementar» com que contribui para o volume: «Na primeira e incerta metade dos anos 1950 [ … ] Delfim Santos era dos raros professores da universidade portuguesa [ … ] que mereciam a consideração de um grupo esparso de intelectuais livres» (p. 75).

No carteio com Jorge de Sena, essa consideração, que toma modos de admiração e estima – «estima pessoal e intelectual» (p. 56), assegura Sena ao seu «caro Amigo e Camarada» (p. 52) -, é nítida e recíproca. E terá, parece, por motivação maior uma reconhecida necessidade de interlocução: «o encontro de Delfim Santos e Jorge de Sena deu-se por via da literatura e dos projectos e realizações de escrita acalentados por ambos» (p. 14), explica Filipe Delfim Santos em seu iluminador «Estudo Introdutório». De facto, o que as cartas trazem é a memória viva de uma efetiva partilha de textos e ideias entre duas importantes personagens da vida cultural portuguesa, numa época especialmente crítica, que tinham curiosidade, respeito e apreço pelo trabalho e pela opinião um do outro.

Sena indaga repetidamente Santos acerca de um seu prometido estudo sobre Nietzsche, que ainda em projeto lhe despertara o interesse; solicita-lhe uma cópia de sua investigação sobre O Pensamento Filosófico em Portugal e, em contrapartida, envia-lhe os primeiros livros de poesia que vai publicando – Perseguição, Coroa da Terra, Pedra Filosofal, As Evidências -, dos quais Delfim Santos será um dos primeiros leitores e comentadores atentos (ousando mesmo uma crítica negativa, embora elegante, no caso d’As Evidências, que lhe parecem «difíceis» e «não evidentes» ). Chega-Ihe também às mãos a primeira peça de Sena, O Indesejado, cujo posfácio qualifica de «magnífico» (p. 61) e no qual encontra um espaço de contato e acordo com o pensamento seniano, conforme relata na carta de 5 de dezembro de 1951:

Li-o em pleno acordo com os seus pontos de vista admiravelmente expostos. Essas páginas são uma boa mostra da sua forma de pensamento sério e profundo, que permitem proclamar o seu Autor, sem favor, como um crítico que sabe dominar com mestria os temas que aborda com subtileza e rigor dignos de admiração (p. 61-2).

A cada texto oferecido, Sena recebe de volta um comentário generoso e sincero, carta-resenha cujo valor vai sendo apreciado, como tão bem ilustra a troca de mensagens em torno da conferência – mais tarde publicada como ensaio – «A Poesia de Camões. Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoniana», a que o meio literário reagira com silêncio e desdém.

Tendo recebido de Sena uma cópia do texto, escreve Delfim Santos, a 31 de julho de 1951: «senti o que de grandioso, pela sua conferência, a nossa geração poderia fazer pelo nosso Poeta. V. mostrou o caminho através de um ensaio dialéctico revelador de Camões» (p. 59). E responde Sena, a 6 de agosto de 1951:

Meu caro Amigo,

Cartas como a sua consolam-me da maldade com que toda a gente se tem recusado sequer a fazer a crítica ao meu trabalho sobre Camões, que julgaria sempre o grande caminho, não por ser o que eu vi, mas porque é o que lá está e era só preciso olhar – julgaria, mesmo que ninguém mo dissesse. Que V. mo tenha dito é uma consolação para fora da roda mais estreita de amigos próximos que nada chegam a dizer porque aí tudo é tácito, até a consideração; e para fora da roda mais vasta do público que nunca diz nada (p. 60).

Se não chegaram a ser amigos próximos, nem por isso desempenha Delfim Santos papel menos importante junto a Sena, como demonstra esta carta. Fora de uma roda estreita de convívio, mas destacado do público em geral, assinalado pelo respeito intelectual que lhe votava o ensaísta, era ele a voz justa e isenta, sua opinião digna de confiança e bem-vinda para alguém que em tão poucos de seus contemporâneos sentia (ou sabia) poder confiar, como desabafaria anos mais tarde – em Camões transfigurado – num poema muito conhecido que não será preciso citar.

Este consolo e incentivo de uma certa solidão compartilhada seria retribuído por Sena, em comentário a uma conferência intitulada «Formação Escolar e Formação Profissional», que, desta feita, Delfim Santos lhe envia em separata. No discurso do pensador (e Delfim Santos faz jus à palavra) da Educação, Sena vai louvar, em carta datada de 4 de março de 1953, «a segurança de um pensador que sabe ser mais importante a formação de um homem coerente com a sua própria atividade que a formação de uma coerência a impor a homens que começam por não existir» (p. 63).

Tratando da questão da formação técnica, defendida por Delfim Santos e apoiada por Sena como necessária ao aperfeiçoamento do ensino em Portugal, essas palavras ecoam, porém, se deslocadas desse contexto específico, como discurso a requerer o direito de cada homem a suas escolhas, àquilo que se chamaria a sua coerência própria, seu carácter, sua ideologia, sua filosofia, sua vida como a quiser conduzir. Ideia malograda no tempo e no meio social, político e cultural em que Jorge de Sena e Delfim Santos viveram, escreveram e trocaram cartas, formando-se ambos, cada qual no seu campo, como intelectuais constantemente frustrados e constantemente em luta contra a mentalidade tacanha que combatia todo pensamento novo e não gregário, todo movimento autónomo.

Em 1959, Sena decidiria deixar Portugal. Data de janeiro daquele ano o último registro dessa correspondência: uma dedicatória no exemplar de Fidelidade que o poeta oferece «A Delfim Santos, com a velha simpatia e a melhor camaradagem do Jorge de Sena» (p. 72). E fiéis camaradas seriam eles, distanciados, mas unidos no seu pathos comum, na sua vontade de liberdade e justiça, na sua espera de uma Pátria que pudessem reconhecer e que os reconhecesse a eles. Empresa que cabe agora às gerações seguintes, que redescobrem os seus textos, que os editam, que o divulgam.

Mônica Fagundes

Colóquio/Letra184, Lisboa, set./ dez. 2013, 230-232.

 

george monteiro sobre a réplica a arnaldo saraiva

Dear Felipe Delfim Santos,

Only a few minutes ago was I able to get to your “answer” to Arnaldo Saraiva that you so thoughtfully forwarded to me. I thank you for it. I was happy to see that you rightfully defend yourself without descending to ad hominem attack.

After all these years following the publication of his piece on Sena’s aborted career as a naval cadet, Arnaldo is still angry, still trying to defend the position he assumed in that article. It was Ezra Pound, I think, who said that anger makes for good prose. Perhaps, but it also makes, sometimes, for seething comments better left unsaid. Isn’t is strange how good scholarship (and the book in question is an example of exemplary scholarship) seems to evoke such attack?

Thanks you again for sharing your piece with me.

Best, George

a contrarresenha a arnaldo saraiva, por filipe delfim santos

OS SINAIS DE FOGO DE ARNALDO SARAIVA

(…) Diz o crítico, no ponto j), que “o anotador não me ouviu nem leu, bastou-lhe a claríssima versão de Mécia, que sempre soube encontrar delfins que nunca põem em causa o que ela diz e que dizem o que ela quer que seja dito”. Não sei se Amaldo Saraiva é um “ex-delfim” de Mécia de Sena, sei é que ele, além de brincar com o meu nome, afirma que eu não o ouvi por servilismo, quando o não fiz porque usei uma formulação imparcial e objetiva: Mécia de Sena “aclara”, sob o ponto de vista dela, o que motivara as alegações de Arnaldo Saraiva; ora “aclarar” não exclui a existência de outras versões, razão pela qual eu não usei expressões como “revela” ou “denuncia”, essas sim taxativas. Quanto ao meu suposto servilismo, nunca Mécia de Sena sugeriu, orientou, interferiu ou reviu qualquer das minhas edições de correspondências; jamais influenciou ou diminuiu a minha liberdade e responsabilidade editorial e autoral – aliás, conhece o meu trabalho quando recebe os livros já prontos. Não vejo como eu possa ser um “delfim” dela, se os houve ou há.

Texto integral em FilipeDSantos_Resposta_a_Arnaldo_Saraiva_24_08_2013

arnaldo saraiva resenha a correspondência jorge de sena / joão gaspar simões

SINAIS DE FOGO

(…) o livro recente “Jorge de Sena/João Gaspar Simões – Correspondência 1943-1977“, com organização. estudo introdutório e notas de Filipe Delfim Santos e com o subtítulo “Incluindo o Carteio de Mécia de Sena”.

Percebe-se mal o que fazem as cartas de Mécia neste volume, com o mesmo destaque das de Simões ou das de Jorge de Sena, e integrais (não citadas ou resumidas só em notas), para mais sendo posteriores, salvo uma, às dos dois escritores, não tendo o valor literário delas e não trazendo nenhuma luz relevante às dos correspondentes ou às suas relações. Assim, além de servirem um protagonismo deslocado, cumprem as comuns finalidades das cartas e de algumas anotações de Mécia, onde às vezes há queixas ou queixinhas contra este ou aquele e contra a pátria, retorcidas distorções e ressentidos ajustes de contas. O curioso é que o volume exclua textos que poderiam iluminar a “correspondência” mas também a longa “incorrespondência” entre os dois escritores. A enorme desproporção entre as dezenas de páginas concedidas ao que Gaspar Simões escreveu – quase sempre favoravelmente – sobre Sena e as duas páginas concedidas ao que Sena escreveu sobre Simões até ficaria atenuada com a inclusão de “invetivas” ou de “sátiras”, a que se refere uma rapidíssima passagem do “estudo introdutório”; mas nem há cheiro de nenhuma das várias publicadas ou estranhamente impublicadas “dedicácias” de Sena que implicam Gaspar Simões; o leitor fica assim sem saber, por exemplo, que Sena chegou a nomear o famoso crítico como “Gaspões”, ou “Simar Gaspões”, e a rir-se dele por ser… cornudo, como se riu de Mário Cesariny por ser homossexual.

(…)

A carta agora publicada tem uma nota de Filipe Delfim Santos que refere o meu texto do Expresso, acrescentando “cujas motivações Mécia de Sena aqui aclara”. Assim mesmo: “aclara” – e como. O anotador não me ouviu nem leu, bastou-lhe a claríssima versão de Mécia, que sempre soube encontrar delfins que nunca põem em causa o que ela diz e que dizem o que ela quer que seja dito.

Texto integral em Arnaldo_Saraiva_Resenha_Simoes_Sena_10_08_2013

as cátedras de café

Meu caro Filipe:

As questões relativas à frequência de tertúlias e “cátedras de café” por parte de Jorge de Sena nunca me ocuparam e só agora, a partir das inquietações que me expõe, se me afiguram como um tema bem interessante de pesquisa. Para uma resposta mais segura, o melhor seria começar por rastrear eventuais menções na correspondência, editada e inédita. Mas, mesmo assim, a julgar pelo que me lembro de ter lido no diário que JS escreveu em 1953/54 (e li-o atentamente algumas vezes), talvez o resultado não seja o esperado. Quer dizer, aí os registros sobre esse tipo de convívio com seus contemporâneos são bem escassos, o que nos leva a hesitar entre se foram mesmo eventuais, ou se JS não lhes atribuía a importância que talvez lhes devesse atribuir. E ainda: nos depoimentos de JS que conheço, também não me recordo de referências a essa forma de sociabilidade citadina

G. S.

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Caríssima G.;

A questão das tertúlias é essencial. Elas eram as únicas tribunas para a intelligentsia pensante do país que não tinha entrada nas universidades (et pour cause…) e que, portanto, se não fosse para falar com a mulher e os filhos em casa onde iriam eles ter quem os escutasse? Na verdade o telefone quase nem existia nessa época ou estava a começar em Lisboa e aí tem vc. a causa da importância deste assunto – era nestes lugares que eles trocavam pontos de vista e cruzavam opiniões. Alguém disse que nas mais exaltadas se depunham governos pela manhã e se os reinstalavam pela tarde, tais eram os fervores tertúlicos dos conturbados tempos da República Velha portuguesa.

Os cafés eram pois verdadeiras, não direi cátedras, mas sociedades e academias de pesquisa e debate sobre temáticas literárias, estéticas, artísticas, políticas, etc. Uma tradição que vinha, obviamente, de Paris. Toda a correspondência entre Delfim Santos e Jorge de Sena está perpassada pela importância desses grupos e da filosofia de vida tertúlica, reunindo cada um deles em dias fixos em seu café próprio. Mais alguma coisa se encontra nesse artigo que publiquei em 2011 na Nova Águia n.ª 8.

Já perguntei pelos cafés à Mécia e ela de nada se lembra e com razão pois como é sabido as tertúlias não eram frequentadas pelas senhoras casadas, nem aliás pelas não-casadas (o António Quadros Ferro fala da Natália mas, mesmo tratando-se do caso pouco convencional que ela era, acredito que fosse admitida ocasionalmente e não como regular). Elas tinham o modelo igualmente francês dos salons, também muito concorridos, onde aconteciam saraus de piano, leituras de poesia, etc. e onde aí sim compareciam muitos homens, senhoras e casais. Alguns desses salons literários eram extremamente influentes, como o que tinha lugar em casa da mesma Natália e onde se receberam escritores estrangeiros do porte de um Henry Miller por exemplo.

F. D. S.