mônica fagundes e as “afinidades ideológicas”

Simpática e elogiosa a resenha de Mônica Fagundes (MF) ao meu trabalho de edição do carteio Jorge de Sena / Delfim Santos. Embora sem aprofundar, a resenhista soube ler o mais relevante desse diálogo. Mas discordo absolutamente das “afinidades estéticas e ideológicas” entre Sena e Delfim. Teria preferido que parasse no “estéticas” e que eventualmente encontrasse outras que não “ideológicas”.

Ideologia e filosofia não quadram: e se eu duvido que MF conheça a “ideologia” de Sena, que eu não sei qual possa ser, estou absolutamente certo de que Delfim Santos não teve nenhuma e que reputaria todo o prêt-a-penser como o flagelo do século XX – que substituiu as crenças religiosas pelas ideológicas sem ganho para a humanidade mas com grande perda: afinal foi por causa de “ideologias” que a Europa se suicidou coletivamente na Guerra de 39-45; foi por causa de “ideologias” que o ensino técnico, tão necessário no parecer de Delfim – parecer subscrito por Sena -, foi destruído em Portugal em 1975; foram precisamente as ideologias que em Portugal corporizaram a “mentalidade tacanha que combatia todo pensamento novo e não gregário, todo movimento autónomo” como MF refere, que sufocaram o questionamento e ostracizaram os homens incómodos.

As ideologias são precisamente a negação do dever e não só “do direito de cada homem às suas escolhas, àquilo que se chamaria a sua coerência própria, seu carácter, sua filosofia (…) sua vida como a quiser conduzir”. A este dever poderia chamar-se o dever de não ideologizar, de recusar toda a comodidade de repetir ideia alheia e sobretudo o de nunca supor ter encontrado respostas para tudo – em lugar de sempre questionar e desafiar todas as respostas.

resenha da correspondência delfim santos / jorge de sena

EPISTOLOGRAFIA: Jorge de Sena e Delfim Santos, CORRESPONDÊNCIA 1943-1959

Organização. estudo introdutório e notas de Filipe Delfim Santos, Lisboa. Guerra e Paz / 2012

É a propósito de um livro emprestado, devolvido com uma breve nota de agradecimento, que tem início a troca de cartas entre Jorge de Sena e Delfim Santos. O livro era um Wittgenstein, cuja filosofia da linguagem bem poderia servir de simbólica ponte a ligar o professor e filósofo Delfim Santos ao poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta – homem de Letras – Jorge de Sena. Neste caso, porém, é o próprio ato de emprestar que serve de mote feliz a uma amizade que se foi fazendo à volta de tertúlias literárias e reuniões culturais, afinidades estéticas e ideológicas, e de uma convivência intelectual profícua que, nos anos 1940/50, representava, por si só, atitude de resistência numa sociedade submetida à censura e ao isolamento, em que se faziam tanto mais necessários os debates, as discussões, o intercâmbio de opiniões e de textos.

Desses esforços dão testemunho os 29 documentos – entre cartas, dedicatórias, inquéritos literários e entradas de diário -, datados de 1943 a 1959, que compõem essa recolha de correspondência, enriquecida ainda por uma secção de Anexos. Esta arrola textos de não menor interesse, como reportagens publicadas no Diário de Lisboa acerca dos debates sobre Arte e Filosofia, e mais tarde Cinema, promovidos pelo Jardim Universitário de Belas-Artes (JUBA), em que Jorge de Sena e Delfim Santos participaram (ao lado de outros importantes intelectuais e artistas portugueses, como José-Augusto França, Almada Negreiros, Mário Cesariny); a «Súmula das Respostas ao Inquérito sobre André Gide», proposto por Sena e respondido por Santos (fazendo parte da correspondência o convite, a aceitação entusiasmada e as preciosas respostas); e o que ambos responderam ao «Inquérito sobre como vivem os intelectuais portugueses a sua relação com a cultura passada em Portugal», dirigido por Eduardo Lourenço.

O volume é apresentado por Mécia de Sena, viúva do escritor e grande embaixadora da sua obra, e tem organização, estudo introdutório e notas (necessárias, competentes e interessantíssimas) de Filipe Delfim Santos, filho do filósofo e responsável pelo Arquivo Delfim Santos, que, num empreendimento continuado e bem sucedido, vem divulgando seus estudos filosóficos e suas importantes e revolucionárias – embora nem sempre reconhecidas – ideias sobre a Educação, e publicando seus textos inéditos, com destaque para a correspondência que manteve com uma série de nomes da intelligentsia portuguesa. Como destaca José-Augusto França na «Nota Complementar» com que contribui para o volume: «Na primeira e incerta metade dos anos 1950 [ … ] Delfim Santos era dos raros professores da universidade portuguesa [ … ] que mereciam a consideração de um grupo esparso de intelectuais livres» (p. 75).

No carteio com Jorge de Sena, essa consideração, que toma modos de admiração e estima – «estima pessoal e intelectual» (p. 56), assegura Sena ao seu «caro Amigo e Camarada» (p. 52) -, é nítida e recíproca. E terá, parece, por motivação maior uma reconhecida necessidade de interlocução: «o encontro de Delfim Santos e Jorge de Sena deu-se por via da literatura e dos projectos e realizações de escrita acalentados por ambos» (p. 14), explica Filipe Delfim Santos em seu iluminador «Estudo Introdutório». De facto, o que as cartas trazem é a memória viva de uma efetiva partilha de textos e ideias entre duas importantes personagens da vida cultural portuguesa, numa época especialmente crítica, que tinham curiosidade, respeito e apreço pelo trabalho e pela opinião um do outro.

Sena indaga repetidamente Santos acerca de um seu prometido estudo sobre Nietzsche, que ainda em projeto lhe despertara o interesse; solicita-lhe uma cópia de sua investigação sobre O Pensamento Filosófico em Portugal e, em contrapartida, envia-lhe os primeiros livros de poesia que vai publicando – Perseguição, Coroa da Terra, Pedra Filosofal, As Evidências -, dos quais Delfim Santos será um dos primeiros leitores e comentadores atentos (ousando mesmo uma crítica negativa, embora elegante, no caso d’As Evidências, que lhe parecem «difíceis» e «não evidentes» ). Chega-Ihe também às mãos a primeira peça de Sena, O Indesejado, cujo posfácio qualifica de «magnífico» (p. 61) e no qual encontra um espaço de contato e acordo com o pensamento seniano, conforme relata na carta de 5 de dezembro de 1951:

Li-o em pleno acordo com os seus pontos de vista admiravelmente expostos. Essas páginas são uma boa mostra da sua forma de pensamento sério e profundo, que permitem proclamar o seu Autor, sem favor, como um crítico que sabe dominar com mestria os temas que aborda com subtileza e rigor dignos de admiração (p. 61-2).

A cada texto oferecido, Sena recebe de volta um comentário generoso e sincero, carta-resenha cujo valor vai sendo apreciado, como tão bem ilustra a troca de mensagens em torno da conferência – mais tarde publicada como ensaio – «A Poesia de Camões. Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoniana», a que o meio literário reagira com silêncio e desdém.

Tendo recebido de Sena uma cópia do texto, escreve Delfim Santos, a 31 de julho de 1951: «senti o que de grandioso, pela sua conferência, a nossa geração poderia fazer pelo nosso Poeta. V. mostrou o caminho através de um ensaio dialéctico revelador de Camões» (p. 59). E responde Sena, a 6 de agosto de 1951:

Meu caro Amigo,

Cartas como a sua consolam-me da maldade com que toda a gente se tem recusado sequer a fazer a crítica ao meu trabalho sobre Camões, que julgaria sempre o grande caminho, não por ser o que eu vi, mas porque é o que lá está e era só preciso olhar – julgaria, mesmo que ninguém mo dissesse. Que V. mo tenha dito é uma consolação para fora da roda mais estreita de amigos próximos que nada chegam a dizer porque aí tudo é tácito, até a consideração; e para fora da roda mais vasta do público que nunca diz nada (p. 60).

Se não chegaram a ser amigos próximos, nem por isso desempenha Delfim Santos papel menos importante junto a Sena, como demonstra esta carta. Fora de uma roda estreita de convívio, mas destacado do público em geral, assinalado pelo respeito intelectual que lhe votava o ensaísta, era ele a voz justa e isenta, sua opinião digna de confiança e bem-vinda para alguém que em tão poucos de seus contemporâneos sentia (ou sabia) poder confiar, como desabafaria anos mais tarde – em Camões transfigurado – num poema muito conhecido que não será preciso citar.

Este consolo e incentivo de uma certa solidão compartilhada seria retribuído por Sena, em comentário a uma conferência intitulada «Formação Escolar e Formação Profissional», que, desta feita, Delfim Santos lhe envia em separata. No discurso do pensador (e Delfim Santos faz jus à palavra) da Educação, Sena vai louvar, em carta datada de 4 de março de 1953, «a segurança de um pensador que sabe ser mais importante a formação de um homem coerente com a sua própria atividade que a formação de uma coerência a impor a homens que começam por não existir» (p. 63).

Tratando da questão da formação técnica, defendida por Delfim Santos e apoiada por Sena como necessária ao aperfeiçoamento do ensino em Portugal, essas palavras ecoam, porém, se deslocadas desse contexto específico, como discurso a requerer o direito de cada homem a suas escolhas, àquilo que se chamaria a sua coerência própria, seu carácter, sua ideologia, sua filosofia, sua vida como a quiser conduzir. Ideia malograda no tempo e no meio social, político e cultural em que Jorge de Sena e Delfim Santos viveram, escreveram e trocaram cartas, formando-se ambos, cada qual no seu campo, como intelectuais constantemente frustrados e constantemente em luta contra a mentalidade tacanha que combatia todo pensamento novo e não gregário, todo movimento autónomo.

Em 1959, Sena decidiria deixar Portugal. Data de janeiro daquele ano o último registro dessa correspondência: uma dedicatória no exemplar de Fidelidade que o poeta oferece «A Delfim Santos, com a velha simpatia e a melhor camaradagem do Jorge de Sena» (p. 72). E fiéis camaradas seriam eles, distanciados, mas unidos no seu pathos comum, na sua vontade de liberdade e justiça, na sua espera de uma Pátria que pudessem reconhecer e que os reconhecesse a eles. Empresa que cabe agora às gerações seguintes, que redescobrem os seus textos, que os editam, que o divulgam.

Mônica Fagundes

Colóquio/Letra184, Lisboa, set./ dez. 2013, 230-232.

 

george monteiro sobre a réplica a arnaldo saraiva

Dear Felipe Delfim Santos,

Only a few minutes ago was I able to get to your “answer” to Arnaldo Saraiva that you so thoughtfully forwarded to me. I thank you for it. I was happy to see that you rightfully defend yourself without descending to ad hominem attack.

After all these years following the publication of his piece on Sena’s aborted career as a naval cadet, Arnaldo is still angry, still trying to defend the position he assumed in that article. It was Ezra Pound, I think, who said that anger makes for good prose. Perhaps, but it also makes, sometimes, for seething comments better left unsaid. Isn’t is strange how good scholarship (and the book in question is an example of exemplary scholarship) seems to evoke such attack?

Thanks you again for sharing your piece with me.

Best, George

a contrarresenha a arnaldo saraiva, por filipe delfim santos

OS SINAIS DE FOGO DE ARNALDO SARAIVA

(…) Diz o crítico, no ponto j), que “o anotador não me ouviu nem leu, bastou-lhe a claríssima versão de Mécia, que sempre soube encontrar delfins que nunca põem em causa o que ela diz e que dizem o que ela quer que seja dito”. Não sei se Amaldo Saraiva é um “ex-delfim” de Mécia de Sena, sei é que ele, além de brincar com o meu nome, afirma que eu não o ouvi por servilismo, quando o não fiz porque usei uma formulação imparcial e objetiva: Mécia de Sena “aclara”, sob o ponto de vista dela, o que motivara as alegações de Arnaldo Saraiva; ora “aclarar” não exclui a existência de outras versões, razão pela qual eu não usei expressões como “revela” ou “denuncia”, essas sim taxativas. Quanto ao meu suposto servilismo, nunca Mécia de Sena sugeriu, orientou, interferiu ou reviu qualquer das minhas edições de correspondências; jamais influenciou ou diminuiu a minha liberdade e responsabilidade editorial e autoral – aliás, conhece o meu trabalho quando recebe os livros já prontos. Não vejo como eu possa ser um “delfim” dela, se os houve ou há.

Texto integral em FilipeDSantos_Resposta_a_Arnaldo_Saraiva_24_08_2013