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F. Santos

Entre o luxo e o lixo a publicidade sacraliza o consumo e diviniza a posse. Fonte - Revista Playboy, 1988.

Índice de matérias

1. As bodas da retórica com a publicidade
2. A publicidARTE e o seu estatuto poético
3. O apelo retórico da publicidade
4. O género retórico da publicidade
5. Quando o anúncio não é publicidade
6. A atracção fatal da publicidade
7. A falsa subversão publicitária
8. Os três graus da publicidade
9. «Leve um, pague três»
10. O significado do insignificante.

 

Iam pouco carregados, pois Wang-Fô amava a imagem das coisas e não as próprias coisas, e nenhum objecto do mundo lhe parecia digno de ser adquirido...

M. Yourcenar, Contos Orientais

1. As bodas da retórica com a publicidade

Não faltam hoje estudos académicos sobre a publicidade, redigidos por sociólogos, semiólogos, iconólogos, psicólogos, linguistas e economistas. É manifesto, porém, que o volume desses estudos ainda não é proporcional ao peso social e simbólico da publicidade sobre a(s) sociedade(s). As recentes abordagens têm proporcionado uma caracterização mais nítida da pandemia publicitária, integrada na teoria geral da comunicação humana. O presente artigo aproxima a publicidade das técnicas de análise retórica, estabelecendo o seu apelo, género e subgénero de acordo com os critérios clássicos. Alguns elementos de crítica social, semiológica e artística completam esta indagação sobre os objectivos e a natureza do acto publicitário. A ilustração das figuras de estilo por meio de peças publicitárias acompanha a sua versão on-line.

A retórica é, no dizer de Aristóteles, a «capacidade para descobrir o que é atractivo» [i]; ela parte pois de um inquérito, de uma investigação sobre os artifícios da articulação e ordenação do discurso (ideia e palavra) pelos quais os falantes, ou os agentes/utentes de outras linguagens, estruturam e reforçam as mensagens que emitem. Estuda as técnicas de ênfase e aperfeiçoamento da expressão, que sistematiza numa grelha de operações discursivas (tropos e figuras), actuantes na dispositio (escolha sintagmática macroestrutural dos signos) e na elocutio (procura dos efeitos que irão amplificar o poder do discurso), que se seguem à inventio inicial (selecção paradigmática dos signos da linguagem visual ou escrita).

A panóplia retórica é abundantemente usada em qualquer fase e tempo de uma língua e cultura e a todos os seus níveis de discurso, começando pelo mais corrente e quotidiano. Podemos aplicar o esforço de sistematização destas mais-valias discursivas a toda e qualquer linguagem, verbal ou não-verbal, sonora ou visual, humana ou animal. [ii]

Apesar da primazia pragmática dos restantes códigos, a generalidade dos autores limitou-se outrora a considerar a aplicação dos recursos retóricos aos códigos linguísticos, usando metodologias e pressupostos ligeiramente diferentes segundo a tradição das sucessivas escolas. Estas seriam divisíveis em sete na diacronia retida por Barthes [iii]: origens na Sicília, Górgias e os sofistas, Platão, aristotélicos - onde ele inclui os autores helenísticos e romanos esp. Cícero e Quintiliano -, a segunda sofística ou neo-retórica, a retórica medieval do triuium, e a da escola a que ele chama, numa perspectiva francesa, dos clássicos, mas que em Portugal se chamaria dos barrocos ou jesuítas. A estes sete momentos poderíamos acrescentar alguns mais - o da retórica extra-europeia, especialmente indiana e chinesa, cujo estudo integrado no património retórico geral está por fazer [iv], e o dos últimos desenvolvimentos contemporâneos, nos quais o próprio Barthes pontificou, a par de outros investigadores dos campos vizinhos da lógica, da semiologia ou da linguística que têm enriquecido transdisciplinarmente as ferramentas da sistematização retórica e alargado o seu campo de acção: atraem hoje bastante interesse os usos político-propagandísticos da teoria da argumentação, por exemplo na retórica do poder, na da contestação e na da conformidade. Barthes, sendo um dos primeiros a comprovar a importância das investigações retóricas no universo da linguagem visual, incluindo as artes plásticas e o cinema, reconheceu que o contributo dos antigos permaneceria como ponto de partida para todos os progressos metodológicos [v]. As pistas que abriu evidenciaram que a publicidade, apurando retoricamente tanto a sua linguagem verbal como a icónica, e muitas vezes exercendo os seus efeitos precisamente no ponto de confluência entre ambas, seria um campo privilegiado para a exemplificação dos seus processos, e é agora raro o manual de retórica que não recolha abundantes citações de textos publicitários.

Jacques Durand, discípulo de Barthes, seguindo algumas sugestões do mestre, propôs em 1970 uma tabela lógica das operações e das figuras retóricas e apresentou exemplos da sua aplicação à publicidade, que em 1987 ilustrou com várias peças extraídas da imprensa periódica vi. O seu trabalho pioneiro merecia ser melhorado e os exemplos actualizados, dado que se tratava de publicidade dos anos 60 sem cor e quase sempre sem o arrojo e a inventividade da que é produzida nos nossos dias. Por isso este estudo é acompanhado por uma instalação em website, presente em http://www.delfim.info/retorica/ onde se demonstra a aplicação da retórica a anúncios correntes e a alguma iconografia não publicitária obtida na imprensa europeia em vários idiomas. A incidência recaiu na distinção de figuras que apresentavam ligeiras variantes entre si e que necessitavam por isso de uma rigorosa contraposição. O componente web deste estudo encontra-se em permanente expansão, sendo entendido como um contributo para uma futura Gramática da Publicidade.

Portal deste site «Retórica e Publicidade»
Uma homenagem aos dois momentos fundadores da retórica, a Antiguidade e o Renascimento,
numa adaptação de uma imagem das campanhas da Benetton.
Fonte - http://www.benetton.com/search/advertising_images.html

2. A publicidARTE e o seu estatuto poético

Podemos afirmar que a linguagem publicitária, ao privilegiar o significante sobre os outros componentes comunicativos, vive da função poética do signo [vii] , pois cria e recria (Gr. poiesis, criação), com uma poderosa estética (aqui no triplo sentido português da raiz Gr. aisthe-, «sensual», «sensível» e «sensacional»), novos e múltiplos significados, ao manipular habilmente os significantes. Cada anúncio constitui em si mesmo um poema visual, ou grafo-icónico, que tem potencialidades para a exploração dos seus dois códigos, o imagético e o linguístico, bem como dos inúmeros subcódigos de ambos. O requinte poético-retórico da publicidade foi salientado por Barthes:

Les critères du langage publicitaire sont ceux-là mêmes de la poésie: figures rhétoriques, métaphores, jeux de mots (…) opérant ainsi cette grande libération des images (ou par les images) qui définit la poésie même.

A publicidade vê-se forçada a uma expressão bastante concisa e incisiva pelas condicionantes económicas dos custos da sua exibição, sendo estas determinadas pela sua exacta localização no epicentro semiótico e pragmático da economia capitalista onde a exposição de um produto é vital para a sua comercialização e consumo. Não sendo o propósito que lhe subjaz muito complexo - limitando-se quase sempre a uma tentação, a um despertar do desejo de consumo [ix] - as obras de comunicação que a suportam (cartaz, spot, etc.) adoptam um extremo de elaboração que compensa a simplicidade do efeito pretendido. Faz parte dos trunfos deste domínio literário-artístico (e das suas limitações) o ter de condensar a sua mensagem num restrito espaço (cartaz) ou tempo (spot), realizando um esforço de síntese onde se procuram maximizar as conotações para se aumentar o desejado impacto do acto comunicativo. Concretizando Barthes, a publicidade está para o livro ou para o filme como a poesia para a prosa - mais forma do que conteúdo, mais síntese do que análise:

Le langage connoté de la publicité réintroduit le rêve dans l'humanité des acheteurs: le rêve, c'est-à-dire sans doute une certaine aliénation, mais aussi une certaine vérité (celle de la poésie) [x].

Arte da concisão, entre a banalidade e a provocação inconsequente, é muitas vezes pelo lúdico que a publicidade faz a sua captatio beneuolentiae. Mas esta inocência é ilusória: a sua mensagem não se limita ao efeito primário (o acima mencionado «compre»), ela veicula eficazmente uma mensagem paralela (parasita?) na qual, a par da divulgação de um produto, são propostos conteúdos mais vastos de conformidade ou conflito com valores sociais, habitualmente pela exploração de clichés (estereótipos), transaccionando desta forma tanto mercadorias quanto postulados morais, aceitando-os ou rejeitando-os, e segundo critérios de conveniência próprios a cada peça publicitária e produto publicitado. A importância não-estética da sua mensagem reside na natureza social e culturalmente comprometida do seu discurso.

3. O apelo retórico da publicidade

A publicidade expressa-se pelo apelo ético, que é o do discurso sobre os atributos, capacidades e comportamentos (Gr. ethos), reais ou supostos, do seu objecto (bens de consumo), ou seja, uma tripla especulação sobre o ethos das mercadorias e o ethos dos enunciantes da mensagem, estes desdobrados na dupla figura do anunciador (que figura na peça publicitária) e do anunciante (que a encomendou), e baseada na performance do segundo e na credibilidade do terceiro. O seu compromisso (velado) com a esfera do social não a leva a confundir-se com a propaganda, que se enquadra num apelo retórico distinto: o patético, do sentimento/sofrimento (Gr. pathos), que invoca e incute emoções fortemente positivas e negativas na sua audiência. Estes dois apelos são contrastados por Aristóteles e Quintiliano com um terceiro, o apelo lógico, o do raciocínio e da argumentação (Gr. logos), que intenta estabelecer uma relação ‘necessária’ entre postulados, forçando conclusões a partir de premissas. Deste modo, por definição, a publicidade não argumenta, seduz. Não apaixona, atrai e deleita. E daqui decorre um critério para a pureza do(s) discurso(s) publicitário(s): o predomínio da valorização qualitativa da mercadoria em detrimento das apreciações passionais ou lógicas, ainda que não se excluam completamente o recurso mitigado a estímulos emocionais e a presença ocasional de entimemas e de paralogismos. [xi]

A distinção entre publicidade e propaganda abrange mais do que a diferença de discursos, ambas possuem igualmente objectos e objectivos diferentes. A propaganda opera no terreno das ideologias políticas e religiosas, com as tácticas do sentir, do exaltar e do comover, enquanto a publicidade se move no campo distinto das trocas mercantis, que é o da esfera do agir, já que a sua influência enquanto veículo de valores (campo da crença, do acreditar, subjacente ao do sentir) é em geral ignorada pelo público [xii] . Mas se é certo que se distinguem pelo discurso e pelos seus propósitos, convergem e contagiam-se pelos seus fins: a propaganda pretende que o indivíduo, através do sentir, se disponha no final do processo por si desencadeado a agir; a publicidade, através da acção a que convida o público, acabará por incutir nele sentimentos, convicções e atitudes perante a vida, mesmo que não seja esta a motivação principal do anunciante.

4. O género retórico da publicidade

Definido o seu apelo retórico, resta a questão do género a que a publicidade pertence, e dos lugares (topoi) próprios desse género. Dos três géneros retóricos, o judicial, o deliberativo e o epidíctico, o discurso publicitário pertence claramente ao último. Diversas características suas evidenciam esta adscrição:

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de acordo com a distinção aristotélica dos públicos, o destinatário não toma parte componente no discurso, limitando-se a assistir ao espectáculo da mensagem (Aristóteles, Rhet. 1.3.1);

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está em causa exclusivamente o talento e a capacidade do enunciante e não a vida do orador - gén. deliberativo - ou de terceiros - gén. judicial - (idem, 1.1.2);

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não existem contraditores, estando o seu discurso desse modo privado dos elementos dramáticos próprios dos outros dois géneros (não se constitui enquanto argumentação) [xiii];

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o seu requinte, esmero e superior beleza são possíveis precisamente por ser um discurso preparado com antecedência pelo seu autor, e não nascido do imediatismo do debate e confronto que condicionam os outros dois géneros;

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o seu lugar próprio são as qualidades das coisas e as suas características [xiv] (qualidades das pessoas ou cidades na maioria da epidíctica antiga, dos bens de consumo na publicidade [xv]), enquanto as ideias constituem a matéria prima do género deliberativo, e os factos o objecto do judicial;

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o seu tempo próprio é o presente, ocupando-se o judicial do passado e o deliberativo do futuro (idem, 1.3.1).

Assim, a publicidade é um discurso epidíctico (Gr. epideiktikos, Lat. demonstratiuum) no sentido em que mostra, aponta, anuncia, exibe [xvi] - torna público, segundo o seu étimo. Dentro deste género filia-se na espécie ou subgénero do encómio ou panegírico, centrando-se no apelo ético que incide sobre as características e o comportamento (ethos) de algo (produto ou serviços). Não tem por função informar o público [xvii] nem tão-pouco comovê-lo ou instrui-lo, pretende isso sim exibir aparatosamente o seu objecto, o que levou os retóricos gregos a considerarem-no em geral ostentatório e gratuito. Apesar disso, Quintiliano ressalva a finalidade eminentemente prática dos elogios [xviii].

Aristóteles elencou os lugares comuns do encómio que a publicidade ainda hoje utiliza [xix]. Eles incluem-se nos recursos da ampliação (auxese) e podem ser divididos em:

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origens (a marca e a sua tradição).

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faz muito...

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é o único que faz...

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foi o primeiro a fazer...

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está entre os poucos que fazem...

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é o que faz mais...

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não se esperava que fizesse tanto.

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estabeleceu um padrão de comportamento.

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recebeu um prémio.

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quando não haja motivo bastante no próprio produto para o seu elogio, ele deve então ser contrastado com as carências e defeitos da concorrência.

5. Quando o anúncio não é publicidade

Se toda a publicidade é veiculada pelo anúncio, nem todos os anúncios são publicitários [xx]. Muitos anúncios comerciais usam um apelo e género distintos: para aduzir um exemplo, existe um amaciador de roupa no mercado cuja embalagem não ostenta alguns dos argumentos tópicos de «eficácia comprovada», «mais 20% de quantidade pelo mesmo preço», ou «melhores resultados em testes face à concorrência», etc. Argumentos lógicos desta sorte forneceriam uma boa razão para preferirmos o produto x ao produto y. Seriam factos objectivos, alegadamente provados, e portanto pertencentes ao domínio factual e não ao qualitativo, como tal estranhos ao apelo ético e ao discurso epidíctico e filiando-se no apelo lógico e na argumentação, do género judicial para as «provas» e do deliberativo para os ganhos em utilidade e economia. Mas em vez dos estafados argumentos lógicos, lemos na embalagem do produto em causa: «flores brancas das Ilhas Gregas». Ora este é um lídimo elemento de publicidade, sem os lugares da argumentação mas com o onírico lugar da evasão publicitária, numa síntese que une as sugestões de viagem, luz e calor, todas elas inapropriadas para um amaciador de roupa do ponto de vista estritamente lógico. Estabelecer a essência não argumentativa da publicidade permite comprová-la como espaço da conotação orientada para o escapismo e a fuga.

Outra demonstração pode obter-se na história dos anúncios de imprensa. Um dos seus capítulos mais importantes foi escrito em finais do século passado com a proliferação dos anúncios a produtos milagrosos que hoje chamaríamos xaropes-panaceias ou «banhas-da-cobra» pseudo-medicinais, e que constituíam uma das principais fontes de receita para as agências de anúncios da época. [xxi]

 

Allan’s Anti-Fat: o anúncio invoca um remotíssimo argumento de autoridade, o médico grego Hipócrates, grosseiramente datado «2000 years ago» e de quem se aduz uma citação não localizada. Participa dos topoi da ‘antiguidade’, da ‘pureza’, da ‘natureza’ e dos supostos ‘benefícios’ desta. Incorre na falácia da petitio principii ao assumir que é verdade hoje o que supostamente foi verdade (?) ontem. Fonte – The Advertising Archives, London.

Estes anúncios, estudados por Schudson como publicidade [xxii], não o podem ser no sentido retórico dado que usam o registo lógico, tentando aduzir argumentos razoáveis para a compra dessas substâncias. O público, na sua maioria, permanecia céptico, e como as características das patent medicine variavam de tempos a tempos (as mesmas substâncias que acalmavam desordens sexuais combatiam pouco depois a calvície ou os resfriados) [xxiii], não era nem nestas informações nem nos ingredientes forçosamente secretos que se concentrava o potencial de persuasão, mas sim na natureza e qualidade dos argumentos lógicos (e falaciosos) invocados, por vezes reforçados pelo estilo para-científico dos textos (uso de latim): eram omnipresentes os argumentos de autoridade (médica e religiosa) e o argumentum ad populum (níveis de vendas). [xxiv]

Ainda que em muitos casos as vendas não fossem notáveis, tais anúncios ocupavam cerca de ¼ do total da publicidade dos jornais, ou mesmo mais. Podemos acrescentar (não o faz Schudson) que ainda hoje os anúncios a produtos desprestigiados são importantes na imprensa contemporânea, mas os milagres químicos deram agora lugar aos serviços de curandeiros, videntes, astrólogos e quiromantes, para um espaço igual ao das beberagens de outrora (mais de 25% do total do volume publicitário médio da imprensa).

Na geração seguinte, segundo os dados desse estudo, a primazia foi tomada pelos department stores, os antepassados dos actuais centros comerciais. Nesta fase, e para estes anúncios, começaram a impor-se o nível artístico, a variedade e a qualidade gráfica, mas decresceu o potencial informativo do anúncio, ou pretensamente informativo, isto é, abandonou-se o registo lógico da persuasão para se adoptar o das sensações (aisthesis) ou da ilustração/exemplificação das acções e qualidades (ethoi) dos produtos. A tendência acentuar-se-ia nos anúncios a produtos de grande consumo da «guerra das marcas»: não se divulgam as propriedades ou a sua composição, demonstra-se antes (de uma forma que pode ser mais ou menos exacta) por imagens (ilusões) ou figuras de estilo (sugestões) aquilo que ele faz ou pode fazer, e da forma mais surpreendente possível – cada vez mais acção, em detrimento de toda a reflexão. Uma conclusão que Schudson não tira para uma fórmula capital: quanto mais falível é um produto, menos o apelo ético é usado (até porque a performance da mercadoria poderia não corresponder de todo às promessas do anúncio), e mais as persuasões lógica e paralógica são tentadas. Um produto duvidoso aposta na informação, na explicitação, no anúncio não-publicitário; um produto já estabelecido pode e deve limitar-se à arte e ao show [xxv].

6. A atracção fatal da publicidade

Se dantes se procurava conselho, em matéria de todos os consumos, junto dos pais e da família, dos amigos e dos mestres espirituais, nos inícios do séc. XX veio a acelerar-se grandemente a decadência dessas influências circumfamiliares, fenómeno para o qual Schudson enumerou algumas causas [xxvi] , associando-o às transformações sociais da segunda década: o almoço passou a ser uma refeição exterior à casa, e tomado na companhia de estranhos; os jovens obtiveram mais tempos livres, passados cada vez mais longe de casa (aumento do número dos carros e melhoria geral dos transportes, etc.), em passeios, viagens ou nos cinemas; criou-se mais variedade de empregos, mais mobilidade; gerou-se a exposição a um mundo mais vasto (novamente o cinema, entre outros media); surgiu a possibilidade de serem estabelecidas cada vez mais amplas comparações. Devido ao desaparecimento dos rígidos estratos sociais do século XIX deu-se início a uma época de caça ao status [xxvii], ou, na expressão de Schudson, impôs-se a democratização da inveja [xxviii]. Esta inveja é certamente um dos ugly feelings a que Packard alude:

«A society that encourages status striving produces, in contrast, a good deal of bruising, disappointment, and ugly feelings. If a society promotes the idea that success is associated with upward mobility, those who can't seem to get anywhere are likely to be afflicted with the feeling that they are personal failures, even though the actual situation may be pretty much beyond their control or capacity to change» [xxix].

Toda essa democratização foi o resultado de uma redistribuição das classes na sociedade de então, e da instauração de uma sociedade sem «classe», em que o poder económico se aliou definitivamente à vulgaridade e ao exibicionismo desenfreados que a moderna publicidade iria espelhar [xxx].

Herdeiro único dos desaparecidos mentores, o anúncio publicitário pretende então passar a fornecer quase todos os dados necessários para uma vida «melhor», proporcionando uma pretensa sensação de saber (crê-se que se detém uma informação vital) e de poder (passa-se imediatamente à compra quando o anúncio nos diz onde fazê-lo). Este império sobre a vida e a consciência das populações, reduzidas a um batalhão de consumidores passivos e de compradores activos, tem suscitado algumas questões sobre a eficácia prática dos seus efeitos, directos e colaterais. Como se interroga Barthes,

Mais qu'est-ce qu'être «bon» ou «mauvais» pour un message publicitaire? Evoquer l'efficacité d'un slogan n'est pas répondre car les voies de cette efficacité restent incertaines: un slogan peut «séduire» sans convaincre, et cependant engager à l'achat par cette seule séduction [xxxi].

O contrário é também válido: o anúncio seduz bastante mas não leva à compra, por desinteresse (o consumidor presume mais qualidade na peça publicitária do que no produto) ou por falta de meios. Pode ser então fruído como um paraíso hipnótico, uma miragem, como alívio e compensação para a «carência» do produto que se acabou de revelar e instalar na consciência do consumidor frustrado, sendo essa ausência mitigada pelo inquestionável prazer de pelo menos se ter tido «acesso ao anúncio». Como não estranhar que frequentemente o público se satisfaça fetichisticamente com este intermediário, consumindo gostosamente o anúncio em vez do produto?

O problema da eficácia da publicidade é uma questão ociosa para a retórica, que estuda o seu fascínio e não as suas consequências, comerciais ou mentais, desejadas ou não, previstas ou imprevistas. Há receitas seguras para bons anúncios, mas não há receitas infalíveis para boas vendas. A acção ou inacção que a publicidade pode originar dependem praticamente nada da mensagem em si e bastante mais de factores individuais, sociais e psicológicos. Os publicitários reconhecem que é no recall que os resultados se procuram, ou seja, na visibilidade e na afirmação de uma ‘imagem de marca’, e não directamente na inflação dos seus volumes de vendas.

A imagem publicitária não tem o poder propulsor do ícone pornográfico (que compele e impele) e o anúncio, na sua vertente prática, é apenas tomado pelo público como simples informação de disponibilidade e não como imperativo de aquisição. Acresce que, como ficou dito, a publicidade não convence nem persuade, dadas as suas distâncias face ao discurso lógico e argumentativo, antes seduz e contagia, afastando-se do racional e dirigindo-se ao reflexo. Por aí passa o carácter decepcionante da aferição dos efeitos comerciais da publicidade, que não se propõe persuadir ou demover o público (argumentos lógicos) nem tão-pouco inflamá-lo (apelo patético), apenas deseja exibir e maravilhar, captando o sonho e o desejo e fixando sedutoramente a atenção e a memória do espectador. Por isso a retórica mede este discurso noutra escala, a da complexidade e harmonia da sua estrutura e arquitectura. Na perspectiva retórica, um bom anúncio não é aquele que leva à venda de muitas unidades de um produto, mas sim aquele que capta efectivamente o imaginário e a atenção do público, ou seja, nas palavras de Barthes, aquele que

...condense en lui la rhétorique la plus riche et atteint avec précision (souvent d'un seul mot) les grands thèmes oniriques de l'humanité (...) et donnent ainsi à l'homme qui les reçoit la puissance même d'une expérience de totalité [xxxii].

7. A falsa subversão publicitária

Também a determinação do impacto social da publicidade, dos seus resultados não económicos mas culturais, está por sua vez comprometida pela sua função psicológica enquanto confirmadora, e não promotora, das crenças do público, o mesmo é dizer, pelo seu papel de agente externo de gratificação simbólica. Escreve Barthes:

La recherche des «effets» semble assez décevante (... la pub) modifie rarement: elle confirme surtout des croyances, des dispositions, des sentiments et des idéologies qui sont déjà donnés par l'état social, économique ou culturel du public... [xxxiii]

Uma vez que a publicidade promove atitudes, terá de propô-las a quem as aceita, ou seja, dirigir-se-á aos que lhe são conformes, aos que consumirão com voracidade as imagens e palavras que confirmem o seu modo de pensar e de estar na vida. Isto faz com que a retórica publicitária não viva tanto, como a da propaganda, da agudização das vulnerabilidades do seu público, mas antes dos pressupostos e confrontos entre os diversos sistemas de valores coexistentes nas sociedades em que a sua mensagem é produzida. Destes antagonismos provêm as distâncias entre as molduras estéticas e sociológicas da publicidade aos automóveis de grande luxo e aquela aos detergentes para lavar o chão. O primeiro objectivo do publicitário é determinar os valores do seu público: «La publicité reflète et récupère les stéréotypes des différents milieux qu’elle vise (…) c’est à la fois toutes les contradictions d’un moment» [xxxiv]. Estes estereótipos, como foi dito, são consumidos mas não criados pela publicidade, eles preexistem-lhe, o que nos remete para crítica de Cícero ao género epidíctico, a que reprovava exactamente o facto de

...expor os seus dados sem nenhuma argumentação, tocando superficialmente o auditório, sem formar ou fortalecer as convicções. Não prova o que é duvidoso, antes magnifica aquilo que já é admitido ou dado como tal [xxxv].

Contudo, é nesta ausência de argumentação, aliada ao império do cliché, que reside a força da proposição publicitária: qualquer demonstração lógica comprovaria, malgré soi, a fraqueza de uma afirmação que dela necessitasse – não se prova o que é «evidente» porque o óbvio dispensa provas. O modus operandi da publicidade (que esta partilha com a propaganda) assenta sempre no axioma, na asserção não fundamentada e portanto indiscutível, tornada inquestionável pela ausência das bases lógicas em que poderia assentar a sua refutação:

L’affirmation pure et simple, dégagée de tout raisonnement et de toute preuve, constitue un sûr moyen de faire pénétrer une idée dans l’esprit des foules. Plus l’affirmation est concise, dépourvue de preuves et de démonstration, plus elle a d’autorité. Les livres religieux et les codes de tous les âges ont toujours procédé par simple affirmation (…et) les industriels propageant leurs produits par l’annonce, connaissent la valeur de l’affirmation. [xxxvi].

No registo patético da propaganda política o valor galvanizante do slogan é recorrentemente explorado [xxxvii]. Se bem que tal tipo de melopeias rimadas e ritmadas não colha inicialmente num espírito mais prevenido um grande favor, a sua repetição substituirá seguidamente quer a prova quer a argumentação, acabando a sua mensagem por se impor ao público, na propaganda como na publicidade, enquanto «verdade» do senso comum. O jogo a que a publicidade procede com os valores e crenças sociais dos consumidores é sempre assumido por uma audiência voluntária e cúmplice, que procura quer na formulação exuberante (e por vezes aberrante) das mensagens, quer no ávido consumo dos produtos propostos, as mais imediatas e básicas gratificações.

O conformismo da publicidade deriva aliás da sua própria pertença ao género encomiástico; já Quintiliano afirma que é importantíssimo para o autor de um encómio ter em conta a mentalidade do público e os valores que este aceita, a fim de convencer as pessoas de que no (produto) elogiado existem precisamente as qualidades que elas apreciam [xxxviii]. E sugere que é de igual forma conveniente proceder também ao elogio do próprio público, a fim de torná-lo receptivo [xxxix]. Já sobre este ponto se pronunciara Aristóteles:

Há que ter em conta o público ante quem se pronuncia o encómio, já que, como dizia Sócrates, não é difícil elogiar o povo de Atenas perante os atenienses. Convém pois usar para cada público os valores que ele aprecie [xl].

Para esta adulação do público diferentes publicidades têm forçosamente que relevar de diferentes sistemas de valores, por vezes mesmo contraditórios entre si. Nenhum anúncio é dirigido à totalidade do público, e isto porque também não existe nenhum produto que se destine à globalidade dos consumidores. Quando a mentalidade imperante no interior do sector a captar recomende uma estratégia de provocação e enfrentamento, a publicidade apostará sem hesitar num jogo de exclusão/oposição às outras camadas socioculturais, tornando-se aparentemente «subversiva». As expressões minoritárias e rebeldes dentro da ordem valorativa vigente são ado(a)ptadas como importantes trunfos comerciais, conseguidos para certos produtos oferecidos a «nichos de mercado» previamente estudados e isolados.

Como os valores simbólicos dos produtos de consumo são, pela sua natureza social e psicológica, bastante fluidos, a exploração publicitária da sua transformação é feita, também ela, num sentido já esperado e anunciado: ...major consumer changes are rarely wrought by advertising. Advertising followed rather than led… [xli] No domínio semiológico, Barthes lembra que o café, um estimulante, aparece nos anúncios publicitários integrado em momentos de pausa, repouso e descanso. Mas essa é precisamente a sua função social, ainda que em total conflito com as propriedades da substância. Também o pão negro passou inesperadamente a ser considerado um indício de distinção e requinte, quando antes estava confinado à dieta rústica ou à dos desfavorecidos [xlii]. Neste caso foi a banalização que actuou contra o valor social do pão branco, tal como, se quisermos fornecer um novo exemplo, o açúcar amarelo ou castanho se tornou socialmente mais «refinado» que o açúcar branco, sendo este quimicamente mais refinado. O grosseiro tornou-se elemento de distinção e de classe porque a valorização social da mercadoria depende das circunstâncias económico-sociais do mercado muito mais do que das características naturais, acrescentadas ou funcionais de um produto. De facto é o valor simbólico dos produtos de consumo que é independente do seu valor de uso, tanto quanto este último é também independente do seu valor de troca (compra) [xliii] .

Bastante ambíguo é o valor social dúbio da própria publicidade, determinado afinal pela ambiguidade do seu estatuto enquanto mercadoria ela própria. Se a sua produção é bastante onerosa, bem como a sua divulgação, o cliente-consumidor não está disposto, regra geral, a procurá-la e muito menos a adquiri-la em bruto [xliv], o que obriga à sua «oferta» forçada pelo anunciante. Este acaba por custear a produção do mass medium que a veicula, a única peça deste jogo que é de facto desejada pelo público devido precisamente aos seus conteúdos não-publicitários. Se bem que encareça os produtos, a publicidade embaratece os media, sustentando todos os esforços de comunicação social. Constitui-se assim num bem de estatuto único e duvidoso: não tem procura específica, está severamente cerceado e limitado pelas leis e pelos costumes em termos de expressão (mais do que as obras «literárias»), encontra-se condicionado fortemente pelos seus custos de produção e de exibição, e é evitado não poucas vezes pelo comerciante como provável investimento sem retorno. Daí advém-lhe uma percepção social penalizante e até uma suspeita geral de desonestidade [xlv]: apesar dos recursos financeiros que uma campanha de nível médio ou superior habitualmente consome, ela será sempre tida como um produto menor, na escala da apreciação sócio-cultural, face, por exemplo, a outras obras de comunicação com custos de produção bastante inferiores: um livro, um filme-documentário, etc. [xlvi] Isto resulta de uma circunstância paradoxal da publicidade: se bem que ela se exiba, a sua influência psico-social tem de permanecer inadvertida para lhe permitir funcionar como lugar simbólico das aspirações e confirmações de identidade, e até mesmo das pulsões (antisociais?) dos indivíduos.

8. Os três graus da publicidade

Contribui igualmente para o encarecimento da publicidade a múltipla intermediação de infinitos agentes (agência, modelos, realizadores do spot, etc.) que se interpõem entre o produtor e o consumidor: essa distância serve aliás o propósito de sacralização e imaterialização dos produtos, enquanto ícones/lugares do simbólico. Ninguém está à espera que num anúncio de águas surja o proprietário da nascente, ou que num anúncio de automóveis venha discorrer o operário da sua linha de montagem: a presença do obviamente fictício que se concretiza na contratação de modelos, actores profissionais ou figurantes põe-nos a muita distância das célebres cortesãs gregas que perfuravam nas solas das suas sandálias as letras da palavra AKOLOUTHI (segue-me) [xlvii], que assim eram impressas em relevo na lama, produzindo uma publicidade que facultava simultaneamente a presença visual do produto, o saber da sua existência e disponibilidade, e por fim (pela aceitação do convite) o poder da sua obtenção. Este seria de facto o grau um da publicidade - já que o grau zero é a simples presença «muda» do produto numa prateleira de um posto de vendas. Um anúncio primário como este evoluiu já no mundo grego para a sua mediatização, pois em Éfeso encontramo-lo metonimicamente efectuado por artificiosas «pegadas» de sandália gravadas nas sucessivas pedras da calçada que conduzia ao lupanar [xlviii]. Este segundo anúncio, retirando ao produto a sua prévia perambulação, situava-se já no grau dois, o mais comum e predominante - o produto ausente é substituído por uma alusão metafórica ou metonímica, ou até simplesmente pelo seu ícone (figuração analógica) ou nome e logótipo (figuração digital). Numa dupla operação mimética, a imagem da imagem [xlix] vem substituir o produto no anúncio, e o consumidor assiste nesse espelho mágico à sua própria espectacular metamorfose numa versão ideal e idealizada, através da interposição do modelo profissional. Finalmente, no grau três, a própria representação do produto está ausente ou a sua referência é ocultada e cabe ao leitor encontrá-la, servindo-se o publicitário de enigmas, adivinhas, etc. Muitas vezes, pelas dificuldades que apresenta para o público, este procedimento restringe-se a uma primeira etapa da publicidade faseada, ao anúncio que, numa inflação remissiva, apenas anuncia outro anúncio. O mundo da publicidade é similar à mundividência do velho mestre pintor chinês que M. Yourcenar caracterizou no conto que citei na epígrafe: um reino onde as imagens das coisas valem infinitamente mais do que as próprias coisas, tornadas indignas pela exaltação triunfante da sua aparência.

9. «Leve um, pague três»

Se a publicidade é gratuita para quem a consome, o anunciante acaba por ressarcir-se, como foi dito, no momento da venda do produto. Mas a dimensão desta prestação do consumidor ultrapassa bastante a simples inclusão das despesas publicitárias no preço final das mercadorias. Entre o produto comprado e o «produto real» nada existe em comum, tal como insiste Barthes, porque de um ao outro são construídas falsas percepções e valorizações que conduzirão a que o consumidor distinga, afectivamente até, produtos que qualquer laboratório certificaria como rigorosamente iguais [l]. Falta a esta constatação barthesiana a presença de um terceiro produto (segundo na ordem fenoménica), o produto publicitado, por sua vez também completamente distinto dos outros dois que lhe servem de enquadramento: é este precisamente o instrumento no qual, e pelo qual, são criadas essas valorizações subjectivas por parte do público, suscitadas no espaço cultural partilhado por este e pelo autor do anúncio, e por regra dentro do sistema de valores em que ambos se inserem: a função de toda a publicidade é precisamente a de acrescentar uma mais-valia simbólica aos objectos. Vejamos um esquema deste processo:


Produto original (a) ---->  Produto publicitado (b) ---->  Produto comprado (c)

O produto (a) está presente no mercado. O produto (b) está presente no anúncio. O produto (c) está presente na imaginação do comprador, resultando da interacção da consciência deste com as percepções do imaginário social e colectivo já reflectidas em (b). Assim o produto (c) nasce tanto do produto (b) - a mensagem do anúncio (que é sintoma mais do que causa de uma apreciação convencional da mercadoria e simultaneamente produto e produtor da própria cultura do consumidor), como das distâncias que este tomou face à natureza do anunciado (a), que estimularam as apetências e salivações do seu comprador (por ex. as miragens simbólicas de promoção social). Obtém-se aqui a fórmula do preço que este paga: deverá custear, metafórica e literalmente, não apenas a produção do objecto material (a) mas a totalidade dos três produtos, porque financia a publicidade (b) e porque é vítima das projecções psicológicas e das expectativas emocionais que ele próprio investe como sobrecarga da mercadoria adquirida (c).

Mas a publicidade procura mitigar este investimento simbólico: certas narrativas de B.D. exploraram a «invasão» de um anúncio pelo seu destinatário quando, por exemplo, um personagem da intriga penetra num cartaz que anunciava um cruzeiro e começa a navegar num barco que antes nada mais era do que um ícone bi-dimensional [li] - e afinal continua a sê-lo já que se constrói uma mise en abime pelo facto do medium, neste caso a revista de papel, ser composto ele também de ícones bi-dimensionais, e assim ser necessário simular uma dupla translatio, a de um universo bi-dimensional para um tri-dimensional e a do mundo dos ícones (anúncio) para o dos referentes (anunciado), sem sair, claro está, sempre dos primeiros. É este esforço de identificação entre o anúncio e o produto na consciência do público (servindo o primeiro de «comprovante» das características do segundo) que ilustra o mito publicitário do anúncio actuante, na constante tentativa para fazer esquecer o artifício sígnico e comunicacional que mascara o facto de que entre um anúncio de um produto e um produto anunciado nada pode verdadeiramente existir em comum.

Outra necessidade das produções publicitárias é apresentar a procura de certo produto, criada sempre artificialmente, como uma necessidade naturalmente existente. O público adere voluntariamente a esta proposta que lhe serve de álibi para a sua pulsão aquisitiva, chegando, como observa Barthes [lii], a justificar a sua fidelidade a uma marca devido a um conjunto de razões «naturais» que são, como é fácil constatar, o seu exacto oposto: fenómenos estritamente culturais que se transvestem com a «inocente» roupagem da natureza. Naturalizar é aqui o conceito-chave:

À la banale invitation (achetez), (la pub) substitue le spectacle d'un monde où il est naturel d'acheter Astra ou Gervais [liii].

Note-se que esta naturalização pode revestir-se de aspectos inegavelmente subtis: a imagem da dengosa jovem que acompanha o poderoso bólide no típico anúncio de automóvel «desportivo» potencia a vontade de poder do comprador duplicada em libido, transmudando assim a sua apetência por um tal produto num impulso natural (animal), o mesmo é dizer «irresistível», quando é unicamente por via de uma dada cultura que o objecto em causa foi constituído em símbolo de posse e associado semanticamente a «controlar», «conduzir», «manobrar», «acelerar», «avançar», «ultrapassar», enfim, a toda a galáxia semântica derivada dos arquétipos de «condutor», «herói» e «macho». Precisamente ao contrário do que pretende Brochand, a publicidade é, de facto, um «miroir véridique, réaliste et sans complaisance d’une société» [liv].

O acima citado conceito de «desportivo» é aliás vulgarmente associado ao de «prático», ainda que quanto mais «desportivo» um produto pretenda ser, mais caro, complexo e por conseguinte menos prático se torne. Barthes refere concretamente as motorizadas «desportivas»: «plus la moto est esthétiquement compliquée, plus elle fait sport» [lv], mas podemos acrescentar que não é só a estética que entretanto se complica, as próprias características dos motores «desportivos» também. Nas motorizadas como nos automóveis, é mais difícil reparar um modelo pertencente a essa categoria de veículos do que proceder a idênticas reparações num outro sem tanto «desportivismo» e complexidade. Um fenómeno actual que faria as delícias de Barthes são as roupas e o calçado «desportivos» usados por quem não pratica qualquer desporto, e bastante mais caros do que as indumentárias habituais: as instruções de lavagem e manutenção para tais artigos de luxo dissociam definitivamente o paradigma «desportivo» da anterior esfera semântica do «prático».

10. O significado do insignificante

Convém ter presente que todos os elementos pertencentes a uma dada peça publicitária são igualmente importantes para suscitar a pretendida emoção estética no consumidor: cor, textura, fundo, enquadramento e perspectiva da imagem impressa, a que no spot se adicionam a entoação, as pequenas frases musicais, os silêncios, os ruídos a par das palavras; e que tanto ou mais importante ainda do que tudo o que num anúncio está presente é a presença do ausente, do aludido - de facto, aquilo que nele não figura (à primeira vista) adquire frequentemente maior importância do que aquilo que explicitamente ele exibe, e é assim que a alusão velada (adianoeta), a silepse, a metonímia e a metáfora tomam geralmente a parte de leão no grupo dos recursos retóricos mais empregues.

Constata-se igualmente que toda a publicidade tem a mesma importância cultural. As mensagens à volta de um sabonete, de um relógio ou mesmo de um político tratado publicitariamente (em modo ético e não patético) são signos igualmente poderosos e representativos de um dado momento de uma cultura, tanto quanto as próprias mercadorias (ou personalidades) publicitadas. Se tem sido observado um aumento do uso da publicidade com objectivos políticos em detrimento do discurso propagandístico, sobretudo em campanhas eleitorais, tal deve-se ao espírito de uma época em que a política desperta pouca ou nenhuma comoção. A «publicidade política» é uma imposição destes tempos, mais do que uma opção, e com vantagens evidentes: se é possível condicionar temporariamente uma população pelo apelo patético e emocional, é contudo bastante limitado o alcance prático e a duração dos efeitos de tal apelo, sobrevindo rapidamente o tédio e a apatia e aumentando gradualmente o desinteresse e a desconfiança, mesmo em situações limite como a de guerra ou de pré-guerra. Pelo seu estilo colérico e apaixonado a propaganda produz frequentemente mais descrédito do que crédito para as suas fontes, já que este registo é tido como impedimento da honestidade dos seus conteúdos. A publicidade, ligada à vida e às acções quotidianas, distante dos arrebatamentos e próxima da rotina, é vivida como mais «aceitável» e aparentemente credora de atenção mais prolongada que uma propaganda fortemente afectiva. Os políticos dos tempos presentes, com um discurso cada vez menos passional, menos ideológico e raramente centrado nas ideias, orientado mais para uma praxis (domínio publicitário do agir) não comprometida nem com a lógica nem com o sentimento, acabam por se ajustar perfeitamente ao apelo ético (um "fazer" descomprometido) que é afinal o da publicidade, procurando antes serem bem «vendidos» no mercado eleitoral com uma «embalagem atraente» do que vir a despertar sentimentos fortes e apaixonados nos eleitores/consumidores do seu produto.

Importante é sem dúvida a acção niveladora da publicidade, apesar dos seus preconceitos classistas e elitistas: por um lado, no que a conteúdos publicitados se refere, e ainda que os objectos publicitados possam ser agentes de mobilidade simbólica, é certo que ela assume uma vincada segmentação do seu público em classes económicas e sociais esteticamente incomunicáveis; mas por outro ignora não só as diferenças linguísticas e culturais (campanhas internacionais), mas igualmente as sociais, etárias e de género no que respeita à sua exposição, à sua manifestação (epifania), ao seu meio de contacto com o público: mais na televisão do que na publicidade impressa, e definitivamente mais ainda no outdoor, a poética evocação do sofisticado perfume ocupa espaço igual e paralelo ou sucessivo ao da prosaica demonstração dos efeitos de um desparasitante capilar, o que provoca o efeito de suspense e surpresa constante sobre os visados na peça seguinte.

Deste modo, apesar das suas contradições teóricas e práticas, ela é uma importante manifestação de cultura, e tende mesmo a ser «a» cultura agregadora das populações, o veículo para os seus transportes utópicos, a descarga das suas frustrações e a amálgama dos seus desejos, mesmo para os menos adquirentes que a consomem por si só, sem procurarem obter os bens anunciados.

Se a publicidade está formalmente está próxima da poesia, como quer Barthes, pode também narratologicamente ser incluída no conto pela sua condensação da acção e do tempo, pelas suas personagens reduzidas a tipos psicológicos (a mãe, o pai, o viajante, o cowboy [lvi]) ou ao anonimato socio-profissional (o executivo, o cientista, a dona de casa), e enfrentando novos tipos antagonistas (a vizinha, o chefe, a «concorrência»), num espaço genérico (o escritório, a casa, a cozinha, o quarto, a estrada, a montanha); também aproxima a publicidade do conto a sua clara função moralizante de recomendação de uma acção, de «conselho» a ser seguido, de sabedoria empírica. Com o romance, por seu turno, a publicidade partilha um poder de evasão e um escapismo que nos fornece uma nova e obsessiva razão para a existência, que já não é o sentir ou sofrer mas agora o comprar e usar.

 [i] - Rhet. 1.2.1: πιθανά, habitualmente traduzido por persuasivo, mas que pode ser também atraente e verosímil.

 [ii] - para exemplo da última servem os abundantes processos retóricos presentes na comunicação animal: a cauda poliptotónica do pavão, a hipérbole do peito de muitas aves no cio, ou a anfibologia presente em certos recursos predatórios que consistem numa ambígua exibição do corpo do animal causando a sugestão de se tratar de outro ser ou de um objecto inanimado, como o transcromatismo metonímico do camaleão. Algumas analogias mais ‘literais’ em G. Kennedy, ‘Rhetoric among social amimals’, Comparative Rhetoric, N. Y. 1997, pp. 11-28.

 [iii] - 'Recherches sur la rhétorique', Oeuvres complètes 1, Paris 1993, pp. 1561-62.

 [iv] - uma recente mise au point das tradições extra-ocidentais pode ser encontrada em G. Kennedy, Comparative Rhetoric, vd. Bibl.).

 [v] - atente-se no seu aide-mémoire sobre 'L'ancienne rhétorique' publicado na revista Communications 16, 1970.

 [vi] - J. Durand, 'Rhétorique et image publicitaire', Communications 15, Paris 1970, e 'Rhetorical Figures in the Advertising Image' in Sebeok, Marketing and Semiotics, Berlin 1987.

 [vii] - na célebre classificação de Jakobson das funções da linguagem: 'Linguistics and Poetics', in Sebeok, Style in Language, Cambridge Mass. 1960.

 [viii] - 'Le message publicitaire', ibidem, p. 1145.

 [ix] - é porque a publicidade excita e atrai que ela resvala muitas vezes para uma analógica mas despropositada erotização.

 [x] - op. cit., ibidem.

 [xi] - contra O. Reboul, Introduction à la rhétorique, Paris 1998, p. 95: «…la publicité privilégie l’ethos et surtout le pathos par rapport au logos (…) le message est bien plus oratoire qu’argumentatif». Ainda que reconheça a componente performativa e estética da publicidade, Reboul confunde os dois apelos, declarando ser «um pathos inovador» aquilo que é simplesmente um clássico ethos: o exemplo que fornece (Lee macht frei) confirma que estamos no domínio dos actos e das qualidades e não no das paixões.

 [xii] - o que aliás só torna o seu componente social mais insidioso e eficaz, pela falta de prevenção do destinatário.

 [xiii] - há que ressalvar que uma parte significativa dos discursos pertencentes aos outros géneros retóricos está hoje intermediada pelos media (passe o pleonasmo), e que por esse motivo a informação, que se inclui no género judicial, e a propaganda, modalidade do deliberativo, ao serem veiculadas pela comunicação social perdem as características de discurso dramático ou oponível que permitem, na comunicação pessoal, opô-las ao género epidíctico.

 [xiv] - Quintiliano, Inst. Orat. 3, 7, 28.

 [xv] - Já para os Antigos a epidíctica podia ter por objecto não só pessoas mas igualmente coisas de toda a espécie, vd. Arist., Rhet. 1.9.1.

 [xvi] - vd. Desbordes, La rhétorique antique, Paris 1996, p. 148 & passim.

 [xvii] - como salienta Desbordes, idem, p. 149; vd. Joannis, O Processo de Criação Publicitária, trad. port. Mem Martins 19982, p. 50: «Que um lenço de papel seja um pouco mais absorvente do que outro, que um verniz tenha um brilho um pouco mais duradouro, que um desodorizante cheire a pinheiro não são informações que, em si mesmas, constituam uma notícia sensacional».

 [xviii] - Inst. Orat. 3, 7, 1.

 [xix] - idem, 1.9.4 e 6.

 [xx] - em inglês diferenciam-se estes conceitos pelos respectivos termos advertising e publicity.

 [xxi] - a própria Coca-Cola começou também por ser vendida como remédio universal antes de se tornar inócuo refresco. Em 1890 o seu proprietário, A. G. Candler, vendia igualmente o Botanic Blood Balm, a «cura para todas as doenças do sangue e da pele». Vd. Schaeffer & Bateman, Coca-Cola, London 1995, pp. 11-13.

 [xxii] - Advertising, The Uneasy Persuasion, p. 162 e segs. O eloquente padrão desta farmacopeia incluia o nome do inventor seguido de uma referência às propriedades ou efeitos dos produtos (ao estilo dos rebuçados do Dr. Bayard, uma designação sobrevivente desses tempos): Brandreth’s Vegetable Universal Pills, Radam’s Microbe Killer, Dr. Lin’s Chinese Blood Pills, Dr. Donald Kennedy’s Medical Discovery, Hayne’s Arabian Balsam, Hoofland’s Greek Oil, Osgood’s Indian Cholagogue, Jayne’s Spanish Alterative, Lydia Pinkham’s Compound…

 [xxiii] - Schaeffer & Bateman, ibidem, reproduzem anúncios onde se declara que a C.-C., na sua fórmula inicial vendida sob o nome de French Wine Coca, era eficaz como «tónico nervoso, restaurador da saúde, estimulante»; pouco depois, já com o nome Coca-Cola, passaria a ser um «tónico cerebral, específico para dores de cabeça, aliviando exaustão mental e física».

 [xxiv] - a mesma reverência pelo argumento de autoridade continua a ditar para as contracapas dos livros anglo-saxónicos os infindos tópicos dos menos credíveis elogios, algo que para o gosto continental denota uma afectação ridícula e uma presunção ingénua.

 [xxv] - J.-M. Adam, L’argumentation publicitaire, defende, tal como o título enuncia, o conceito de uma publicidade argumentativa, semi-deliberativa. A sua fraca solução a esta questão passaria pela distinção entre publicidade de texto-imagem e publicidade de imagem-texto, pp. 11-16, esquecendo que a intenção argumentativa não reside na quantidade de texto, mas sim na sua qualidade enquanto tal. Uma curta frase pode encerrar um argumento que por sua vez pode não estar contido num texto de página inteira.

 [xxvi] - op. cit, p. 182, com base em trabalhos precedentes de outros autores.

 [xxvii] - paráfrase do título da obra de Packard, The Status Seekers, 1959.

 [xxviii] - Schudson, op. cit., pp. 151, 182.

 [xxix] - American Social Classes, Boston 1995, p. 174.

 [xxx] - é de excluir a tese de que a publicidade, dando a ilusão de promoção social ao consumidor através de certos produtos, mais não lhe serviria «qu’à mieux accepter de rester dans le rang» (argumento referido acriticamente por Brochand, Le Publicitor, Paris 19934, p. 497). Se este postulado é válido no campo económico, não sendo os chamados sinais exteriores de riqueza outra coisa senão uma aparência assaz duvidosa, já no campo simbólico e da auto-gratificação os bens bastam-se a si mesmos porque são eles próprios constituintes do estatuto a que o consumidor se arroga pela sua posse.

 [xxxi] - op. cit., p. 1145.

 [xxxii] - idem, ibidem.

 [xxxiii] - op. cit., p. 954.

 [xxxiv] - Brochand, op. cit., p. 496.

 [xxxv] - Part. orat. 71, apud Desbordes, op. cit., p. 150.

 [xxxvi] - G. Le Bon, Psychologie des foules, Paris 1895, 1998r, p. 73.

 [xxxvii] - «...quelque chose de catégorique, de ‘définitif’, qui est peut-être ce qui en impose le plus…», Goyet. Rhétorique de la tribu, rhétorique de l’état, Paris 1994, p. 157.

 [xxxviii] - Inst. Orat. 3.7.23.

 [xxxix] - idem, 3.7.24. Esta é a função adulatória do magnificente duplo do consumidor que figura no anúncio e que é habitualmente um modelo profissional, cujo ilusório desempenho dificilmente pode ser «modelar» para o consumidor. De facto é uma substituição ideal, que vem corrigir o factual: o consumidor é retratado não como ele é, mas como ele próprio acha que ‘deveria ser’. Vd. adiante § 8.

 [xl] - Rhet. 1.9.4.

 [xli] - Schudson, op. cit., p. 179; o autor prossegue o seu argumento apresentando o case study do fumo feminino: se certos sectores da sociedade se queixavam nos anos trinta do contributo pernicioso da publicidade para este fenómeno escandaloso, só o puderam fazer ignorando ostensivamente o facto de «...tens of thousands of women began smoking cigarettes in the 1920s before a single advertisement was directed toward them», p. 183.

 [xlii] - dois casos evocados por Barthes, op. cit., pp. 932 e 927.

 [xliii] - importantes exemplos em Baudrillard, Pour une critique de l'économie politique du signe, Paris 1972, 1993r, passim.

 [xliv] - «...Eu sei que a publicidade dá dinheiro, mas acreditem numa coisa: ninguém compra revistas de publicidade, e vocês estão a carregar a (vossa) revista muito nesse campo...», in carta de um leitor à redacção da Revista Exame Informática, nº 54, 1999, p. 16.

 [xlv] - o preconceito antipublicitário é expresso pelo público no axioma «um bom produto não precisa de publicidade». Vd. Brochand, op. cit., p. 489: «Généralement, les messages (publicitaires) sont bien acceptés par le consommateur, tandis que l’institution publicitaire a une image négative dans l’ensemble».

 [xlvi] - «Whatever may be understood by the term ‘literature’, ads are not included in it (…they) are a parasite discourse which has attached itself to literary discourse as a host», G. Cook, The Discourse of Advertising, London 1992, p. 143. Claro que não é honesto afirmar que o problema está na publicidade e não precisamente na definição de «literatura» que for adoptada.

 [xlvii] - Hans Licht, Sexual Life in Ancient Greece, New York 1993r, p. 338.

 [xlviii] - V. Vanoyeke, La Prostitution en Grèce et à Rome, Paris 1990, p. 46.

 [xlix] - quando opta pela representação analógica o anúncio é apenas uma imagem da imagem do produto, ou seja, uma reprodução reduzida (em geral bidimensional e sob certa escala e perspectiva) da simples aparência exterior de algo que não se reduz, claro está, ao aparente – tenha-se em conta que a sua essência é independente duma aparência que é acidental, e a primeira é atraiçoada pela segunda na sinédoque que subjaz a toda a iconografia – Vd. S. Tisseron, Psychanalyse de l’image, Paris 19972, p. 174.

 [l] - 'Pour une psychosociologie de l'alimentation contemporaine', op. cit., p. 925.

 [li] - É o mesmo tema do conto de Marguerite Yourcenar escolhido para epígrafe deste artigo, em que o mestre pintor «foge» da condenação imperial pintando um barco e evadindo-se pela paisagem marítima que criara.

 [lii] - Op. cit., ibidem.

 [liii] - idem, p. 1154.

 [liv] - op. cit., p. 496.

 [lv] - 'Mythologie de l'automobile', id., p. 1139.

 [lvi] - sendo este último, sempre na sua versão desprofissionalizada de «aventureiro», o único avatar do grande ausente na publicidade, o guerreiro/soldado que é o herói por excelência dos contos.

 

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