Entrevista de Felipe D. Santos, gravada em
Out. 2005 em Lisboa. |
Quando foi
que conheceu o José Maria Ferreira de Castro?
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Exactamente não sei dizer... parece-me
que o conheci desde sempre... mas foi certamente aqui em Portugal, e
tive a felicidade de contar com a sua amizade. Não me lembro bem é
do que ele estava a fazer profissionalmente no momento em quem nos
conhecemos, mas claro que escrevia sempre. |
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Como era
José Maria no trato com os outros? |
Era alguém cheio de afecto, um
homem discreto e muito sensível, muito atento aos outros. E era um
escritor que amava aquilo que escrevia, e também o que os outros
escreviam, um homem extraordinariamente bom, generoso e muito
fraterno. |
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Era um homem feliz ou
angustiado? |
Feliz não acho, angustiado
talvez... Havia nele uma angústia talvez existencial, ou talvez por
ver que o mundo cá fora não era aquele sonho que ele teria
idealizado quando ainda estava na Amazónia... |
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E que mais causas existiram
para ele não ser feliz? |
Não sei, há de ter tido tantas
razões para ter essa sua angústia... Ele teve uma grande paixão pela
autora de Pedras Falsas, a Diana de Liz, que morreu
jovem. E ficou aquela saudade, aquela ausência. Mais tarde ele casou
com uma senhora muito bonita, pintora de mérito - Helena Muriel, e
tiveram uma filha, Elsa Muriel Ferreira de Castro, que se
formou em Medicina. |
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É importante lembrar que ele
não provinha de meios escolarizados... |
Ele partiu da sua terra, Ossela,
no conselho de Oliveira de Azeméis, quando ainda era um rapazinho,
no início da sua adolescência. Era pobre e por isso emigrou, foi
apenas com a escolaridade primária e certamente muito desamparado.
Deixou uma namoradinha, amor de infância, e foi trabalhar para a
selva. Mas nunca perdeu o desejo de aprender, que foi cultivando
sempre. |
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Como é que uma criança tão
afastada dos meios literários pôde desenvolver tamanho amor pelas
letras e pela literatura? |
Seria por uma força inata que
nele trazia. Só mais tarde conseguiu comprar livros. Também teve por
muito tempo uma paixão pelos jornais e pela escrita jornalística,
que pôde realizar quando voltou a Portugal. |
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Em Portugal ele viveu muito
em Sintra... |
Pois foi, e é onde hoje,
felizmente, existe um pequeno museu a ele dedicado. |
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A Matilde faz parte, há
muitos anos, do júri do Prémio de Literatura Juvenil Ferreira de
Castro. E chegou a integrar outros júris literários com o
próprio Ferreira de Castro. |
Sim, creio que foi na Sociedade
Portuguesa de Escritores, mas não posso situar quando, foi há já
muitos anos. |
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Quando ele foi proposto por
duas vezes para o Prémio Nobel de Literatura houve algum momento em
que ele teve uma possibilidade real de o conseguir? |
Não sei, o Nobel é por vezes uma
aposta muito difícil. Mas ele merecia, claro! E então hoje, em que
estamos num tempo de revolta por parte da Natureza contra o Homem,
tudo nos faz pensar nessa selva e no modo como ela está a ser
violentada. Ele teve a a intuição do valor, da importância imensa
daquele oceano verde... |
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A saga dele na selva foi
muito dura... |
Pois foi, o humano já era
agreste, e a Natureza então... Era a beleza espantosa e, ao mesmo
tempo, a dureza, as imensas dificuldades que uma Natureza assim pode
opor ao Homem... |
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Ele falou-lhe pessoalmente
sobre algumas memórias da Amazónia? |
Algumas vezes, mas ele não se
lamentava daqueles anos.Ele foi paupérrimo por lá e cresceu, cresceu
por dentro, mas sempre com muitas dificuldades. Ele era um homem sem
saúde, e também não teve aquela infância e juventude afagadas por um
carinho que o ajudasse a viver. |
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Mas os problemas de saúde
foram devidos à sua juventude na selva? |
Directamente não digo,
acho que não. Mas o que mais se destacava era ele ser um homem
realmente muito bom, muito generoso. Creio que podem achar que estou
a exagerar, mas nunca o ouvi falar mal de ninguém. Ele tinha um
grande poder de aceitação, de entendimento das pessoas, do mundo, de
tudo. |
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Porque será que ele não
ficou a viver no Brasil? |
Isso eu não sei, como português
seria natural que ele quisesse vir para Portugal, mas sempre teve
uma ligação muito profunda ao Brasil. |
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E como era a vida dele em
Lisboa? Ele ia a salons literários? |
Era sobretudo um companheiro
muito amigo do escritor Assis Esperança. hoje completamente
esquecido, e de quem eu fui muito amiga também. Via-o igualmente
muito em companhia do Alexandre Cabral e do Jaime Brasil,
juntavam-se diariamente na Pastelaria Veneza, ali na Avenida da
Liberdade. Todas as tardes lá estava ele. Também gostava muito de ir
a França, que era realmente uma paixão para ele. |
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A tradução francesa de "A Selva" foi
importante para a internacionalização da sua obra, já que foi a
partir dela que muitas outras línguas conheceram o texto. |
Dizem que foi uma tradução
maravilhosa. E além da França, ele tinha também uma paixão pela
Espanha, falava-me tanto de lá... |
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Essa tertúlia da Pastelaria
Veneza era para discutirem literatura? |
Discutia-se um pouco de tudo. |
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Quem eram os autores de quem
ele mais gostava? |
Não sei dizer, mas ele lia
muito... |
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Para ele a literatura devia ser um
espelho da sociedade? |
Sim, ele seguia o realismo
social, mas também procurava o encontro consigo próprio. E isso
desde pequeno, já que em criança escreveu, como é sabido, um
livrinho. |
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E houve uma altura em que ele teve
também uma grande actividade política. |
Pois teve, ele foi realmente
empenhado num mundo diferente. |
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Ele foi escolarizado basicamente na
infância, mas nunca teve o desejo de fazer estudos propriamente
formais? |
Não. Ele foi durante muito tempo
jornalista, fez a sua escola na prática. E com imensas dificuldades
também. A sua obra jornalística está muito perto de ser esquecida.
Há uma "lei do esquecimento" que por vezes é um bocado cruel. No
entanto creio que o seu nome enquanto escritor perdurará. |
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A primeira temática de Ferreira de
Castro é a imigração, um tema cada vez mais actual. Portugal
tem nos inícios do séc. XXI muitos imigrantes brasileiros nas mesmas
condições de semi-escravatura que sofreram os emigrantes portugueses
no Brasil nos inícios do séc. XX, por exemplo nos cafezais
paulistas, que ele imortalizou em "Emigrantes", obra de 1928. Isso
não confere relevância à sua temática e à sua obra? |
Há também muitos emigrantes
portugueses na Venezuela e haverá, com toda a certeza, coincidência
de vidas. Quantas delas não foram duríssimas? Cá houve o tempo da
emigração também para o Brasil, para a França... Agora existe o
oposto. Não sei quantos brasileiros estão cá, gosto muito dos
brasileiros, tenho um carinho tão grande por eles... Já tenho aqui
muitos amigos brasileiros, o que é tão bom. |
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E por falar em amigos brasileiros, o
José Maria Ferreira de Castro era muito próximo de Jorge Amado,
outro escritor que deveria ter recebido o Prémio Nobel... |
Sim, outro homem extraordinário,
ele prefaciou uma edição de "A Selva". Jorge Amado encontrava-se com
Ferreira de Castro aqui em Lisboa, onde vinha muitas vezes com a
Zélia, uma mulher amabilíssima. Ficavam no Hotel Tivoli. Mas
encontraram-se também no Brasil. Jorge Amado era um bom companheiro
meu também. |
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Na obra de Jorge Amado está muito
presente o mar, papel que em Ferreira de Castro
é tomado pelo rio e pela selva, mais tarde pela montanha, e essas
são as suas grandes forças. |
O mar não é uma força em Ferreira
de Castro, tanto que ele foi viver para Sintra e Sintra é serra. Em
Sintra existe aquele banco em que ele está sepultado, e onde ele se
sentava muito para pensar. |
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A paisagem sintrense é totalmente
oposta à da selva, já que é maciça, montanhosa, sem um rio, sem
quaisquer traços tropicais... |
Sintra é uma paisagem de encanto,
romântica, que maravilhou também o baiano Jorge Amado. Se é possível
sobreviver a uma selva, que é agressiva, que nos agride, pode-se
então amar esse lugar que nos repousa. Precisamos do estímulo, mas
precisamos, por vezes, do apaziguamento. |
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Quase sempre os escritores
portugueses e brasileiros ficam muito impressionados pela selva, por
esse mito geográfico da paisagem do Brasil... |
Em Portugal não surge esse tema
na literatura, aparece o mar, o litoral, e a terra doce ou agreste.
Lá no Brasil temos, para além de um país imenso, o sertão e a selva,
num apelo mágico e fortíssimo da Natureza, que sentimos também nos
escritores africanistas e nos escritores africanos. |
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Talvez Ferreira de Castro tenha
captado um pouco dessa essência do Brasil, dessa facilidade em tocar
a alma das pessoas, em comunicar sem barreiras sociais ou
culturais... |
Assim era também o Jorge Amado.
Em Viana do Castelo ele tinha um amigo do peito que era o dono de
uma pastelaria que fazia um pão-de-ló maravilhoso. Esse pão-de-ló
era um encanto para o Jorge Amado e para a Zélia. Ora esse senhor
mandava-lhes o pão-de-ló pelo correio, lá de Viana do Castelo! Hoje
nessa pastelaria há o retrato de Jorge Amado. A capacidade que eles
tinham de tocar tudo e todos faz destes escritores dois homens
extraordinários. |
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Para si, qual é o sentido de "A
Selva"?
Porque quis ele partilhar aquela experiência terrível que ele tivera
na infância e na juventude? |
Foi aquilo que ele viveu
profundamente, o deslumbramento e a amargura ao mesmo tempo. Eu acho
que "A Selva" tem seiva, tem paixão, tem talvez uma premonição
daquele coração verde do mundo, de um mundo agora tão poluído e tão
sujo. |
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No interior da Pastelaria Veneza, na lisboeta
Avenida da Liberdade, um painel de azulejo alude ao nome do
estabelecimento comercial, outrora frequentado por José Maria
Ferreira de Castro. |