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Amália:

Eu
conheci Amália, após tantos anos a ouvi-la, sobretudo ao vivo, em extático
deleite, desde que me conhecia e até onde podiam chegar as minhas pregressas
memórias. E se o simples som do seu nome evocava já na minha infância a
sacralização de uma Deusa (até ali quase inacessível), eu preferia contudo as
suas interpretações mais recentes, e disse-lho nessa ocasião, porque nos verdes
anos em que já se anunciava o que a sua voz viria a ser faltava ainda a
profundidade, a espessura, o timbre magoado com que só a maturidade a podiam
enriquecer. Lembro-me que sorriu como se fosse um cumprimento, como se eu, que
entretanto tremia ao dirigir-lhe as minhas palavras de adorador confesso,
estivesse a querer agradar-lhe. Possivelmente não concordou - quem não glorifica
a sua juventude? Eu mantive a convicção de que a vida, se relativiza os
sofrimentos, dá-lhes com o passar dos tempos a dimensão do irremediável,
trocando-lhes por nostalgia aquilo que lhes retira em perturbação. E foi essa
Amália gloriosamente triste, esse ícone a que as décadas iam conferindo uma
vetustez sobre-humana, imortal, que eu um dia conheci, e que me marcou desde
então para sempre. Porque se a sua voz era excelsa, era-o também a sua
personalidade doce e perspicaz, a sua sensibilidade extrema que faziam dela um
ser excepcional, uma presença do Sublime num mundo que o é tão pouco, um exemplo
de bondade e autenticidade a que nos era impossível resistir.
Diz-se que Amália teve sorte, na sua vida e na sua carreira. Terá sido sorte ou
antes a obra desse magnetismo que dela irradiava, e que nos subjugava tão
profundamente? Quem com ela privou responderá pela segunda hipótese. E tudo
aquilo que a vida lhe deu (e o mais que lhe poderia ter dado) ela mereceu-o
plenamente.
É certo que Amália começou no fado, mas nunca foi uma
fadista no sentido redutor deste cliché, antes uma cultora de todos os géneros,
de todas as épocas musicais, de todos os estilos: se era arrepiante a transmitir
uma tristeza de que o fado vive, era igualmente magnífica na interpretação de
cantigas de amigo, de Camões, e de poetas seus contemporâneos, de textos
estrangeiros até. A particularidade do canto amaliano, o fio que une as suas
versões, é o alongamento das vogais (diástole) numa dicção defectiva e elíptica
que sacrifica a consonantização das palavras, retomando o canto árabe onde
Amália refrescou as raízes do seu estilo, ou os recursos do bel-canto operático,
com os seus requebros de hipervocalização. Operando esta fusão de temas, de
géneros, de estilos, e de ritmos, o fenómeno Amália é ímpar pela genialidade da
sua intuição criadora de que o novo se faz (con)fundindo o antigo.
Deixo aqui, nesta página, a minha muito sentida homenagem a
um talento infinito e a um coração gigante, e a memória de um encontro que me
acompanhará para sempre. Bem-haja, Amália!

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