




| |




Século XX
Século XIX
Século XVIII
Século XVI
Século XV
Séculos XIV-XII

Al Berto
… há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem
com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o
próximo shoot de heroína... há uma cidade por baixo da pele e uma casa de
sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando
mágoas... há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro do
meu pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no
soalho do quarto de pensão... há uma cidade de visco e de esperma ressequido
e uma pastilha elástica presa ao fundo dum copo... há um sorriso e um engate
e um camóne e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio... há uma
cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorrega das mãos dos amantes... há
um dedo de lâminas usadas e um beco sem saída onde se enroscou um puto e um
cão de febre... há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo
nocturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam
sexos mergulhados em naftalina... há um osso branco que perfura a insónia e
a madrugada e esta cidade de nojo e de fascínio... há uma navalha cortando o
betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos...
há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho dum bordel e a luz
do teu olhar dentro duma janela antiga... há uma cidade que se escapa para
fora da noite espia avança e mata... há uma cidade de trapos queimados e de
vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono dos poucos brinquedos... há
uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lívido que
se suicida... há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco com o
pânico nos dentes e todo o meu corpo sangra... treme... e tem medo... e
morre...
regresso ao Índice

Alberto Pimenta
artur hipólito morreu com 62 an
os, 20 anos após ter feito 42, mas
na altura quem diria?
heitor fragoso morreu atropelado.
foi levado para o hospital, mas es
queceram-se duma parte do corpo
no local do acidente.
manuel testa morreu sem se ter c
onseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.
arnaldo rodrigues caiu a um bur
aco da canalização e nunca mais
foi visto.
jeremias cabral pôs termo à exist
ência por motivos desconhecidos.
zeca gomes morreu em defesa da
pátria mas a pensar noutra coisa.
antónio de oliveira morreu igual
a si mesmo: triste sinal dos te
mpos!
bernardo leite pôs-se a pensar na
morte e não conseguiu voltar a
trás.
ivo gouveia tinha uma agência f
unerária e escolheu para si um
caixão representativo.
guilherme silva fechou-se no sót
ão, para morrer num lugar eleva
do.
luís dimas respirava saúde, agora
respira um hálito de eternidade.
antónio garcia, o coveiro, teve u
ma síncope e caiu dentro da cov
a que estava a abrir.
bento nogueira engasgou-se com
um pedaço de carne e desapare
ceu do nosso convívio.
paiva de jesus enforcou-se.
joão baptista viu o cunhado lev
antar-se do caixão e teve uma sí
ncope.
lourenço pinheiro estava a ver a
trovoada e um relâmpago entrou
lhe por um olho e saiu-lhe pelo
outro.
jorge velez de castro finou-se
após uma longa vida de sacrifí
cios, toda dedicada ao bem-comu
m. e foi assim: depois de ter inge
rido o seu sumo de laranja, foi c
onduzido para a cadeira de rep
ouso pelo enfermeiro de confian
ça. nela se conservou, de boca en
treaberta e olhos fechados, até
às onze horas. às onze horas, o e
nfermeiro de confiança aproxim
ou-se com a intenção de o condu
zir ao banho. pondo delicadamen
te a mão nas costas da cadeira,
disse: são horas do banho, senhor
director. como este não desse si
nal de ter ouvido, o enfermeiro
de confiança, com a costumada jo
vialidade, debruçou-se e repetiu:
são horas do banho, senhor direc
tor. posto isto, empurrou a cadei
ra até ao balneário, passou um br
aço pelos rins outro por baixo d
os joelhos do director, e assim o
levou para a água, só então se da
ndo conta de que ele já não vivia.
zé maria, o peidolas, foi expulso
da vida pela autoridade compet
ente.
joão gaspar foi um nobre e val
oroso homem que morreu heroi
camente no campo da honra. p
az à sua alma.
raul santos deitou-se um dia e p
or mais que o sacudissem nunca
mais se levantou.
alfredo penha caiu tão desastrada
mente da cama que nem é possív
el dar pormenores da sua morte.
joaquim perestrelo morreu no me
io da missa, qual quê! ainda a m
issa não ia a metade!
sousa dias morreu de pé, mas en
terraram-no deitado, como toda a
gente.
regresso ao Índice

Alberto Pimenta
que o resplendor deste século são empolas de água,
e pó sacudido do vento, que todas as cousas da terra têm por fim a terra.
ama ama
ama zonas
certas zonas
miss issipi
ama indo
ama vindo
ama olga
ama volga
ebro ébrio
bramaputra
escalda escalda
gua diana
com apolo
ama dão
e ama deu
ama teu
e ama tua
ama frates
e eufrates
ama núbio
e danúbio
colorido
colorado
ama tejo
ama sena
ama sado
orinoco e tocantim
xingu ural tarim
ama tudo
e por fim
ama pó
ama pó
ama pó
cinza e nada.
regresso ao Índice

J. C. Ary dos Santos
1
Enfio os mocassinos do meu tempo nos pés
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.
Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita.
A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o nosso caudal de medo
não há sonho que levante
o sonho que é hoje infante
na ponta dum pesadelo.
Ai flores Ai flores de lapela
flores de plástico e de feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.
Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
passeiam
andam
desandam
param
perseguem
persistem
caminham
calculam
correm
doem detêm desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem.
2
Lá vem o teddy-poeta
que não tem nada a dizer
filho-família do mar
que lhe morreu ao nascer.
Parasita das palavras
que tem no banco a render
e se gastam, como a voz
dum povo que vai morrer.
Lá vem o teddy-poeta
que não tem nada a perder.
Vem numa hora de bruma
depois do café com leite
depois do banho de espuma
que lava o sal e o cheiro
a fingir que se levanta
dum leito de nevoeiro.
Chega de Alcácer Quibir
com escorbuto na alma
e morre, mas devagar,
neste mar-asma de calma.
regresso ao Índice

Alexandre O'Neill
…já te disse que são os do primeiro…
…e afinal não pudemos telefonar…
…ai nem queiras saber o engenheiro…
…se me dão licença eu vou contar…
…penses nisso era só o que faltava…
…não as outras duas é que são as tais…
…mas o senhor presidente autorizava…
…na avenida centenas de pardais…
…de facto muito inteligente…
…ó filha por aqui fazes favor…
…que veio ontem p'ra falar co'a gente…
…é mesmo lá ao fim do corredor…
regresso ao Índice

Mário Cesariny
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo:
fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.
regresso ao Índice

Mário de Cesariny
O que vai ao mar buscar dinheiro.
Rapaz nave-gado que pratica a arte da marinharia.
AMARINHEIRAR — O mesmo que amarinhar.
Pôr-se a pessoa à moda de amarinha (…)
regresso ao Índice

Mário de Cesariny
O ar tesão (nato) é o ar do artesão quando
em artesanato assim como o sol dado é o
ar do soldado quando em ar tesão.
Lit. — «não havia braço são que pudesse romper o tesão da água»,
Dic. de Marinha, 505.
«Correm as águas como sangue», id.
regresso ao Índice

Jorge de Sena
Dizia ele que deixara a vida
pelo mundo em pedaços repartida.
Há quatrocentos anos que isso foi.
Mas desde então e sempre o que no mundo
se repartiu para não voltar
é o que — a mais que um poeta e dos maiores —
poderia ter sido o povo português.
*
Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma.
*
Real, sub-real, super-real,
ou — como querem alguns — surrealista?
Que dizer-se de um povo cujo tempo
se dissolveu no espaço e cujo espaço
não teve nunca tempo para dissolver-se
em tempo?
*
Eterno era só Deus. Os povos não.
E não as línguas e as cidades. Mas
quem vive de alheamento e sobrevive
não é que eterno se ignora morto?
*
Salvador Correia
de Sá e Benevides
libertou o Brasil dos holandeses
e Angola deles pois que sem escravos
o mundo não se açucarava bem.
Um dia regressou a Portugal
à espera de ser visto como herói
(que era). Gastou os fundos dos calções,
as economias, as plumas do chapéu,
e os borzeguins comprados para a Corte,
nas antecâmaras reais e realengas.
E um dia. exausto ele já de esperas e delongas
a Majestade recebeu-o enfim.
O que é que ele queria? O que é que ele pedia?
Ah não pedia nada. Só licença
de voltar ao Brasil. Estava velho
e não havia
em Portugal espaço pra morrer-se.
*
Espaço no Brasil, pobre Correia!
Só reduzido a cinzas centenárias
é que o D. Pedro para lá regressa
a pedido de várias famílias.
(Legitimistas riem-se nos túmulos,
e os liberais não choram, que os não há).
*
Está aberta a inscrição para poetas épicos
que celebrem em oitavas a vitória
de Alcácer-Quibir.
(15 mil réis de tença anual para o poeta
não nomeado por velho e demasiado grande).
Mas este povo: o povo: esse de séculos
em terra dura e curta vida imerso?
O que sonha ou pensa? Franças e Araganças?
Se lhe tiraram cama em que sonhar!
Se lhe não deram nunca o imaginar
mais que sardinha assada sem esperanças!
Não sonha ou pensa, apenas faz os filhos
que um dia houveram sido o povo se —
um se e sempre se de tantos séculos
e terra dura e curta vida e gente
que está por cima e há outros mais abaixo
danados só de não estarem em cima
do mesmo povo, o tal que todos amam
e lhes faz figas quando voltam costas.
regresso ao Índice

Jorge de Sena
Roer um osso — humano, se possível,
é um sonho português de sobrevida,
após anos e anos de despirem
com os olhos as mulheres que no Rossio
por diante deles passam e das mãos
movendo-se contínuas pelo bolso
das calças mais viris da cristandade.
Roer um osso — humano, se possível,
de mãe, de pai, de irmã, de tio ou prima,
de amantes ou de esposas, filhos, netos,
ou de inimigos ou de amigos mesmo,
ou do vizinho em frente, ou dum retrato
só visto no jornal, ou criatura
desconhecida inteiramente — um osso.
Roer um osso — humano, se possível,
mas pode ser de vaca ou de carneiro,
ou porco ou gato ou cão ou papagaio,
ou à sexta-feira bacalhau ou peixe
em espinhas esburgadas que recordam
o rosto doce ou monstruoso odiado
na vénia às Excelências brilhantinas.
Roer um osso — humano, se possível,
seja fingido mesmo, de borracha
para durar mais tempo que não passa,
ou de cimento pra quebrar-se os dentes
no gozo de moê-lo cuspinhado
(e o pensamento em furibunda mão
que excita ansiosa as impotentes raivas).
Roer um osso — humano, se possível,
é o sonho português de sobrevida.
regresso ao Índice

Jorge de Sena
Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não, nem é ditosa porque o não merece,
nem minha amada, porque é só madrasta
nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
Quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela
Saudosamente nela,
Mas amigos são por serem meus amigos
e mais nada.
Torpe dejecto de romano império,
Babugem de invasões,
Salsujem porca de esgoto atlântico,
Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
De mesquinhez, de fátua ignorância.
Terra de escravos, de cú para o ar,
Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
Terra de funcionários e de prostitutas,
Devotos todos do Milagre,
Castos nas horas vagas, de doença oculta.
Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
E santos com balcão de secos e molhados,
No fundo da virtude.
Terra triste à luz do Sol caiada,
Arrebicada, pulha,
Cheia de afáveis para os estrangeiros,
Que deixam moedas e transportam pulgas
(Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa.
Terra de monumentos
em que o povo assina a merda
o seu anonimato.
Terra-museu em que se vive ainda
com porcos pela rua em casas celtiberas.
Terra de poetas tão sentimentais
Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
Terra de pedras esburgadas,
Secas como esses sentimentos
De oito séculos de roubos e patrões,
Barões ou condes.
Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
Eu te pertenço.
És cabra! És badalhoca!
És mais que cachorra pelo cio!
És peste e fome, e guerra e dor de coração!
Eu te pertenço!
Mas seres minha, não!
regresso ao Índice

Gomes Leal
Mulher de tranças negras e compridas,
e de falas fingidas,
que, alta noite, ao ruído das orgias,
com casquinadas frias,
achincalhavas corações dolentes…
— com prazer vejo que não tens dois dentes!
regresso ao Índice

Garcia Monteiro
E ficou com as mãos pousadas no teclado,
Esquecida, a cismar num mundo de riqueza:
Supunha-se num baile, um conde apaixonado
Segredava-lhe: «Adoro-a!… Eu mato-me, marquesa!…»
Ah! se fosse fidalga!… Ao menos baronesa…
Que baile! que esplendor na noite de noivado!…
Estremeceu, nervosa, achou-se na pobreza,
E o piano soltou um grito arrepiado.
Absorvida outra vez, prendeu-se-lhe o sentido
À mesma ideia – o luxo. Ia comprar cautelas…
E imaginou de novo o conde enfurecido…
Um palácio, um coupé, esplêndidos cavalos…
Nisto o marido entrou, de óculos e chinelas,
E miou com ternura: — «Anda aparar-me os calos».
regresso ao Índice

Garcia Monteiro
Às discretas soirées de D. Amália Costa
não vai o que em geral se chama gente baixa;
esta senhora tem sangue fidalgo e gosta
de conservar-se em pé na altura em que se acha.
É tal a selecção que há quem se zangue.
O festejado poeta Aurélio Câncio Rosa
disse já: «Na questão da análise do sangue...
Oh!... É uma senhora extra-escrupulosa!»
A alguém disse ela um dia: «Hoje um simples artista
quer ser gente também. Ah! creia que me exalto
quando vejo um ninguém a erguer-se, a dar na vista,
tendo o arrojo de usar bengala e chapéu alto!»
E os seus olhos aqui tornaram-se fosfóricos.
Ora é fácil de ver por semelhantes falas
que só o que possui pé nobre, pés históricos,
é que pode pisar o chão das suas salas.
Ali vai, por exemplo, o senhor João Proença,
que é barão e será visconde qualquer dia;
homem que às vezes sente uma tristeza imensa
por ter sido alfaiate — um erro que ele expia.
Ali vai o Liró, de esplêndidas maneiras,
cuja profundidade em ciência de minuete
iguala a vastidão das suas algibeiras,
que levam de ordinário o resto do bufete.
Ali vai Câncio Rosa, um vate de alto apreço,
que as damas têm à mão para inventar alcunhas;
mas sempre triste em verso... Um luto! Não conheço
luto mais negro; passa ao colarinho e às unhas.
Consta que no final duma recitação
em que exaltara o mar, «gigante d'ais tamanhos»
perguntou-lhe uma velha em tom de admiração:
«Se o senhor ama o mar, porque não toma banhos?»
Ali vai o senhor Mateus do Nascimento,
depositário fiel, seguro, de tal brio,
que deram-lhe a guardar um certo testamento
e ele fê-lo tão bem que ninguém mais o viu.
Ali vai o major Espadas, um valente,
homem cujo valor tem suscitado invejas,
pronto sempre a bater-se. E ao chá? Façam-lhe frente
Que bravura! É um herói no assalto das bandejas.
Vão outras damas mais de igual merecimento,
a quem se pede à vez «que a festa solenizem»:
E cada qual então, puxando o seu talento,
apresenta o que sabe. E que talentos! dizem.
Produz-se a animação assim desde o começo;
Marca as danças Liró; Espada dá notícias;
toma-se um rico chá, de que se diz o preço...
Umas noites enfim de poéticas delícias.
Não é pois de admirar a roedora inveja
que existe. Câncio então, no Liberal do Pinto,
dá notícia; e conclui: «Inútil talvez seja
dizer que ali só vai o que há de mais distinto».
regresso ao Índice

Eugénio de Castro
Meia noite, meia noite,
Da velha torre caía,
Em seu camarim real
A bela Ausenda cosia.
Tela que estava cosendo
De fina prata par'cia;
Junto dela, sua mãe
Em cama de ouro dormia...
Longo mantinho de lustro
Seu esbelto corpo envolvia,
Anel que tinha no dedo
Frechas de cor despedia.
Passos na escada se ouviram,
Passos de alguém que subia,
Ouvindo tal, a Princesa
A abrir a porta corria.
Ouvindo o gemer da porta,
A mãe os olhos abria,
Abriu-os mas não viu nada,
Que o candil já se morria.
— Quem é que anda abrindo portas,
Filha, aqui ao pé de mim?
— Senhora mãe, é o vento
Que abre as portas do jardim.
Segura com tal resposta,
Logo a mãe adormecia;
Vendo-a dormir, Dona Ausenda
À porta se dirigia.
A um gesto da bela Ausenda,
Um cavaleiro apar'cia,
De cochonilha mimosa
Era o gibão que vestia.
Em belo cinto bordado
Punhal de prata trazia;
Nos braços do cavaleiro
Dona Ausenda se metia.
Ao barulho dos abraços,
A mãe os olhos abria,
Abriu-os mas não viu nada,
Que o candil já se morria.
— Quem é que está aos abraços,
Filha, aqui ao pé de mim?
— Senhora mãe, são as árvores
Que se abraçam no jardim.
Segura com tal resposta,
Logo a mãe adormecia;
Vendo-a a dormir, Dona Ausenda
Ao seu amado sorria,
Sorria e nos braços dele,
Nos seus braços se metia;
Forte corrente de beijos
Aquelas bocas prendia.
Ao barulho desses beijos,
A mãe os olhos abria,
Abriu-os mas não viu nada,
Que o candil já se morria.
— Quem é que está dando beijos,
Filha, aqui ao pé de mim?
— Não são beijos, são as fontes,
São as fontes do jardim.
Segura com tal resposta,
Logo a mãe adormecia...
Vendo-a a dormir, Dona Ausenda
Ao seu amado sorria,
Sorria e nos braços dele,
Nos seus braços se metia;
Era de seda lavrada
O corpete que a cingia.
Contra o peito, o cavaleiro
Contra o peito a comprimia,
Com tanta força que a seda
Do seu corpete rangia,
Com esse ranger de seda,
A mãe os olhos abria,
Abriu-os mas não viu nada,
Que o candil já se morria.
— Quem está machucando sedas,
Filha, aqui ao pé de mim?
— É o vento que arrasta folhas,
Folhas secas no jardim.
Segura com tal resposta,
Logo a mãe adormecia;
Vendo-a dormir, Dona Ausenda
Ao seu amado sorria,
Sorria e nos braços dele,
Nos seus braços se metia,
E aos beijos do seu amado
Seus lindos seios abria.
O cavaleiro os beijava
De tal arte que par'cia
Que os não estava beijando,
Antes que neles mordia.
Com esse morder de seios,
A mãe os olhos abria
Abriu-os mas não viu nada,
Que o candil já se morria.
— Quem anda mordendo seios,
Filha, aqui ao pé de mim?
— É o jardineiro que morde
Frutas verdes no jardim.
regresso ao Índice

Popular (recolha por Vitorino)
— Ó Laurinda linda, linda,
Ó Laurinda linda, linda,
És mais linda do que ó Soli,
Deixa-me dormir uma noite
Nas dobras do teu lençol!
— Sim, sim, cavalheiro sim,
Sim, sim, cavalheiro sim,
Hoje sim, amanhã não,
Mê marido nã está cá,
Foi prá feira de Granão.
Onze horas, meia noiti,
Onze horas, meia noiti,
Marido à porta bateu,
Batê uma, batê duas,
Laurinda nã respondeu.
— Ó ela está doentinha,
Ó ela está doentinha,
Ó já tem outro amore,
Ó então pracura a chavi
Lá no mei’ do corridor.
— De quem é este chapéu?
De quem é este chapéu?
Dabruado a galão?
— É para ti mê marido,
Que fiz eu por minha mão.
— De quem é aquele cavalo?
De quem é aquele cavalo?
Que na minha esquadra entrou?
— É para ti mê marido,
Foi teu pai quem te mandou.
— De quem é aquele suspiro?
De quem é aquele suspiro?
Que ao meu leito se atirou?
Laurinda que aquilo ouviu,
Aí no chão desmaiou.
— Ó Laurinda linda, linda,
Ó Laurinda linda, linda,
Não vale a pena desmaiar,
Todo o amor que t' eu tinha
Vai-se agora a acabar.
— Vai buscar as tuas irmãs,
Vai buscar as tuas irmãs,
Trá-las todas num andor,
E a mais linda delas todas,
Há-de ser o meu Amor!
regresso ao Índice

Cesário Verde
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-os perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais exactos,
Os meus alexandrinos...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
regresso ao Índice

Guerra Junqueiro
I
Ele era nesse tempo uma criança loira
Vivendo na abundância agreste da lavoira,
Ao vento, à chuva, ao sol, pastoreando os gados,
Deitando-se ao luar nas pedras dos eirados,
Atravessando à noite os solitários montes,
Dormindo a boa sesta ao pé das claras fontes,
Trepando aos pinheirais, às fragas, aos barrancos,
No rijo e negro pão cravando os dentes brancos,
Radioso como a aurora e bom como a alegria.
Quando no azul do céu cantava a cotovia,
Aos primeiros clarões vibrantes da alvorada
Transportava ao casebre o leite da manada,
Acordando, a assobiar e a rir pelos caminhos,
Os lebréus nos portais e as aves nos seus ninhos.
E à tarde quando o Sol, extraordinário Rubens,
Na fantasmagoria esplêndida das nuvens,
Colorista febril, lança, desfaz, derrama
O topázio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,
Ele ia então sozinho, alegre, intemerato,
Conduzindo a beber ao trémulo regato,
A golpes de verdasca e gritos estridentes,
Num ruidoso tropel os grandes bois pacientes.
O seu olhar azul de limpidez virtuosa,
Onde brilhava a audácia heróica e valorosa,
A candura infantil e a inteligência rara,
O timbre da sua voz imperiosa e clara,
A linha do seu corpo altivamente recta,
Tudo lhe dava o ar soberbo dum atleta
Em miniatura.
II
Um dia o pai, um bravo aldeão,
Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:«João:
À força de trabalho e à força de canseiras,
A moirejar no monte e a levar gado às feiras,
Consegui ajuntar ao canto do baú
Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,
Além de ser mais novo, és mais inteligente.
Vou botar-te ao latim; quero fazer-te gente.
Hás-de me dar ainda um grande pregador.
Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.
Aquilo é grande vida; é vida regalada.
Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!
Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,
Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,
Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,
E a missa seis vinténs e doze os baptizados.
Depois, independente e sem nenhuns cuidados!
Olha, João, vê tu o nosso padre-cura:
É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura,
Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;
Pois tem feito um casão em meia dúzia d'anos.
Isto é desenganar; padres sabem-na toda...
É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.
É pinga da melhor, e tudo quanto há!
Quando o abade morrer hás-de vir tu p'ra cá.
Despacha-te o doutor nas cortes; quando não
Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição.
Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!
É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira
Toca pró seminário. Eu quero ir para a cova
Só depois de te ouvir cantar a missa nova».
III
Numa tarde d'Outono, a sonolento trote
Um macho conduzia em cima do albardão,
Já coluna da Igreja, o novo sacerdote,
O muitíssimo ilustre e digno padre João.
Ao entrarem na aldeia os dois irracionais,
Dos foguetes ao grande e jubiloso estrépito
Um velho recebeu nos braços paternais,
Em vez do alegre filho, um monstro já decrépito
Que acabava de vir das jaulas clericais.
Que transfiguração! Que radical mudança!
Em lugar da inocente, angélica criança,
Voltava um chimpanzé, estúpido e bisonho,
Com o ar de quem anda alucinadamente
Preso nas espirais diabólicas dum sonho.
Seu corpo juvenil, robusto e florescente,
Vergava para o chão, exausto de cansaço:
Os dogmas são de bronze, e a lã duma batina
Já vai pesando mais que as armaduras d'aço.
A ignorância profunda, a estupidez suína,
A luxúria d'igreja, ardente, clandestina,
O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,
Tudo isto perpassava em turbilhão confuso
Na atonia cruel daquele hediondo aspecto,
Na morna fixidez daquele olhar obtuso.
Metida nas prisões escuras de Loiola,
A sua alma infantil, não tendo luz nem ar,
Foi como os rouxinóis, que dentro da gaiola
Perdem toda a alegria e morrem sem cantar.
IV
Como ninguém ignora, os sórdidos palhaços
Compram, roubam às mães as loiras criancinhas,
Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,
Transformam-lhes num junco elástico as espinhas,
E exibem-nas depois nos palcos das barracas,
Dando saltos mortais e devorando facas
Ante o espanto imbecil da ingénua multidão;
E para lhes cobrir a lividez plangente
Costumam-lhes pintar carnavalescamente
Na face de alvaiade, um rir de vermelhão.
Também o jesuitismo hipócrita-romano,
Palhaço clerical, anda pelos caminhos
A comprar, a furtar, assim como um cigano,
As crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.
Vão levá-las depois ao negro seminário,
Às terríveis galés, ao sacro matadoiro,
E escondem-nas da luz, assim como o usurário
Esconde também dela os seus punhados d'oiro.
Dentro da estupidez e da superstição,
Casamata da fé, guardam-lhes a razão,
A análise, esse forte e venenoso fluido,
Que, andando em liberdade, ao mínimo descuido
Poderia estoirar com trágica explosão.
O que o palhaço faz ao corpo da criança,
Fazem-lho à alma, até que dela reste enfim,
Em lugar do histrião que nas barracas dança,
O pobre missionário, o inútil manequim,
O histrião que nos prega a bem-aventurança
A murros de missal e a roncos de latim.
As almas infantis são brandas como a neve,
São pérolas de leite em urnas virginais:
Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve,
Cristaliza em seguida e não se apaga mais.
Desta forma, consegue o astucioso clero
Transformar, de repente, uma criança loira
Num pássaro nocturno estúpido e sincero.
É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira
A marca industrial do fabricante — um zero!
regresso ao Índice

Filinto Elísio (Francisco Manuel do Nascimento)
Cristo morreu há mil e tantos anos;
Foi descido da cruz, logo enterrado:
Mas até aqui de pedir não têm cessado
Para o sepulcro dele os franciscanos.
Tornou Cristo a surgir entre os humanos,
Subiu da terra aos céus, lá está sentado,
E ainda à saúde dele sepultado,
Bebem (o saco o paga) estes maganos.
E cuida quem lhes dá a sua esmola,
Que eles a gastam em função tão pia?
Quanto vos enganais; oh gente tola!
O altar mor com dois cotos se alumia;
E o frade com a puta que o consola,
Gasta de noite o que lhe dais de dia.
regresso ao Índice

Nicolau Tolentino
A carnal tentação desenfreada
Que ao sangue quente alta justiça pede,
Fez com que eu, embrulhando-me na rede
Subisse de uma puta a infame escada.
Ligeiras pulgas saltam de emboscada
Fartando em mim de sangue humano a sede;
Arde a vela pregada na parede,
Já de antigos morrões afogueada.
Saiu da alcova a desgrenhada fúria
Respirando venal sensualidade,
Vil desalinho, sórdida penúria:
Muito pode a pobreza e a porquidade;
Abati as bandeiras à luxúria
Jurei no altar de Vénus castidade.
regresso ao Índice

Bocage
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade.
Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade.
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
«Aqui dorme Bocage o putanheiro:
Passou a vida folgada, e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro».
regresso ao Índice

traduzido por Bocage
Se me lembro, Aelia, tiveste
De belos dentes a posse:
Numa tosse dois se foram,
Foram-se dois noutra tosse.
Segura noites e dias
Podes tossir a fartar
Podes, que tosse terceira
Já não tem o que levar.
regresso ao Índice

João Maldonado
Não lamentes, ó Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.
regresso ao Índice

Francisco Rodrigues Lobo
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não vale,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
Se alguma tem afeição
Há de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhes queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas são mulheres!
regresso ao Índice

Esparsa sua ao desconcerto do mundo
Camões
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau; mas fui castigado.
Assim que só para mim
Anda o mundo consertado.
regresso ao Índice

Camões
Perdigão perdeu a pena,
Não há mal que lhe não venha.
VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Quis voar a ûa alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.
regresso ao Índice

Episódio
do Velho do Restelo
Os Lusíadas
Camões
94. «Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95. "Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cûa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!
96. "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana;
97. "A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
98. "Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
99. "Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve Fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
100. "Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a Lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
101. "Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
102. "Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
103. "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
104. "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitecto co filho, dando,
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!"
regresso ao Índice

Sá de Miranda
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
regresso ao Índice

Sá de Miranda
Tornou-se-me tudo em vento,
Após tormento e tormento
Que eu passei cuidando em al;
Em fim veo cedo o mal
E tarde o conhecimento.
Eu assi desenganado,
Vejo vir males maiores.
O tempo a que sou chegado!
Que posso doer às dores,
E dar cuidado ao cuidado.
regresso ao Índice

A António Pereira, Senhor de Basto,
quando se partiu para a Corte co’a casa toda
Sá de Miranda
Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crecerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não val aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Todo cheira: eu óleos trago;
Vem outros, trazem perfumes,
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar.
(…) Direis, e eu não vo-lo nego,
Mas quereis também que diga?
Este mundo é armado em briga,
Não busqueis nele assossego,
Nem nûa alta ermida antiga.
Todavia há diferenças
Antre o de cá e o de lá:
Cá, nas mais das desavenças,
Éreis mestres das sentenças;
Para ond’is outrem as dá.
Tereis em troca manjares,
Composições delicadas,
ûas por outras grosadas,
Pelos tempestuosos mares
A grão perigo buscadas.
Convites de quem convida!
Amostram-vos suas tendas:
Quanta cousa i é perdida!
Ceas imigas da vida,
Imigas más das fazendas!
Disto o cheiro, disto a cor,
Que preço não tem igual:
Milagres de Portugal!
— Cousas de tanto sabor
para saberem tão mal!
Ao reino cumpre em todo ele
er a quem seu mal doa,
Não passar tudo a Lisboa,
Que é muito o peso, e com ele,
Mete o barco n’água a proa.
Vereis barcos ir à vela
Uns que vão, outros que vem,
Como que se desavem
C’ûa viração singela.
Tanta força a arte tem.
Os marinheiros vadios,
Que vilmente a vida apreçam,
Polas cordas dos navios
Volteam como bugios
Inda que vos al praceçam.
Não hei por perda esta leve,
Que sejam palavras tudo.
— Mas ao coração acudo!
Senão, dizei: quem se atreve
À dor esperá-la mudo?
São elas, porém, já muitas:
Fê-las ir crecendo a mágoa!
Lembro-vos as vossas fruitas,
Lembro-vos as vossas truitas,
Que andam já por vossas n’água.
regresso ao Índice

Jorge d'Aguiar
Esforça-te meu coraçom,
não te mates, se quiseres,
lembra-te que sam molheres.
Lembra-te qu’é por naçer
nenhûa que nam errasse
lembrete que seu prazer,
por bondade e mereçer,
nam vi que dele gostasse,
pois nam te des a paixam,
toma prazer se poderes,
lembra-te que sam molheres.
Descansa, triste, descansa,
que seus males sam vingãças,
tuas lagrimas amansa,
leix’as suas esperanças.
Ca pois naçem sem rezã,
nunca por ella lhesperes;
lembra-te que sam molheres.
Tuas mui grãdes firmezas,
tuas grandes perdições
suas desleais nações
causaram tuas tristezas.
Pois nã te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
veras que sam molheres.
Que te presta padeçer,
que taproveita chorar,
pois nunc’outras ham de ser,
nem sam nunca de mudar?
Deix’as com sua naçam,
seu bem nunca lho esperes;
lembra-te que sam molheres.
Não te mates cruamente
por que fez ta grande errada,
que quem de si se nam sente,
por ti nam lhe dará nada.
Vive lançando pregam
por hu fores e vieres,
que sam molheres, molheres.
Cabo
Espanha foi já perdida
por Letabla hûa vez,
e a Troia destroida
por males qu’Elena fez.
Desabafa, coraçam,
vive, nam te desesperes,
que quem fez pecar Adam
foi a mãi destas molheres.
regresso ao Índice

Duarte da Gama
Não sei que possa viver
neste reino já contente,
pois a desordem na jente
nã quer leixar de creçer.
A qual vai tam sem medida,
que se não pode sofrer
nam ha hi quem possa ter
boa vida.
Outros nom tem moradia
mais de seis çent’reaes,
os quaes querem ser iguaes
cos fidalgos de valia.
Ja ninguém nã quer usar
da nobreza dos passados,
se nam vinte mil cruzados
ver se podem ajuntar.
Outros vão trazer atados
Hûs lencinhos no pescoço,
que cõ gram pedra nû poço
deviam de ser lançados.
Outros, sem ser mãçipados,
sendo menores de idade,
andam ja cõ vaidade
agravados.
Outros hã por cousa boa
nã ter homens ne cavalos,
e despreçã os vasalos
por se vire a Lixboa.
Os quaes, se fossem lebrados
das pendenças, e das guerras,
folgariam de ter terras,
e criados.
Em qualquer aldeazinha
achareis tal corruçam,
ca molher do escrivam
cuida que he hûa rainha.
E tam bem os lavradores
com suas mas novidades
querem ter as vaidades
dos senhores.
Em Roma, segundo lemos,
ordenaram dous çensores,
os quaes represores
dos vicios e dos estremas.
Assi no tempo presente
nam seria muito mal,
aver hi official
de desenganar a jente.
regresso ao Índice

Regra
sua pera quem quiser viver em paz
D. João Manuel
Ouve, vê e cala.
e viverás vida folgada.
Tua porta çerrarás,
teu vezinho louvarás,
quanto podes nam farás,
quanto sabes nam dirás,
quanto vês nam julgarás,
quanto ouves nam crerás,
se queres viver em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando falares te mando:
de quem falas, onde e quê,
e a quem, como e quando.
Nunca fies nem perfies.
nem a outro enjuries,
nom estês muito na praça,
nem te rias de quem passa,
seja teu todo o que vestes;
a ribaldos nam doestes,
nam cavalgarás em potro,
nem ta molher gabes a outro;
nom cures de ser picam
nem travar contra rezam.
Assi lograrás tas cãas
ou tuas queixadas sãas.
regresso ao Índice

Martin Soarez
Foi um dia Lopo jograr
en cas duü infançon cantar,
e mandou-lh’ele por don dar
três couces na garganta,
e foi-lh’escass’, a meu cuidar,
segundo com’el canta.
Escasso foi o infançon
en seus couces partir enton,
ca non deu a Lop, enton,
mais de três na garganta;
e mais merece o jograron,
segundo com’el canta.
regresso ao Índice

Tenção
de mal-dizer com o jogral Lourenço
D. João Peres Aboim
— Lourenço, soías tu guarecer
como podias, per teu citolon,
ou ben ou mal, non ti digu’eu de non,
e vejo-te de trobar trameter;
e quero-te’eu d’esto desenganar:
ben quanto sabes tu que é trobar
ben quanto sab’o asno de leer.
— Joam d’Avoim, ja me cometer
veeron muitos por esta razon
que me diziam, se Deus mi perdon,
que non sabia ‘n trobar entender;
e veeron poren comigu’entençar,
e figios eu vençudos ficar;
e cuido-vos d’este preito vencer.
— Lourenço, serias mui sabedor,
se me vencesses de trobar nen d’al,
ca ben sei eu quen troba ben ou mal,
que non sabe mais nen um trobador;
e por aquesto te desenganei;
e vês, Lourenço, onde ch’o direi:
quita-te sempre do que teu non for.
— Joam d’Avoín, por Nostro Senhor,
por que leixarei eu trobar atal
que mui ben faç’e que muito mi val?
Des i ar agradece-mi-o mia senhor,
por que o faç’; e, pois eu tod’est’ei,
o trobar nunca eu leixarei,
poi-lo bem faç’e ei (i) gran sabor.
regresso ao Índice

Pêro Garcia Burgalês
Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por ûa dona que gran ben queria:
e, por se meter por mais trobador,
porque lh’ela non quis (o) ben fazer,
fez-s’el en seus cantares morrer;
mais resurgiu depois ao tercer dia!
Esto fez el por ûa sa senhor
que quer gran ben; e mais vos en diria:
por que cuida que faz i maestria,
enos cantares que faz, á sabor
de morrer i e des i d’ar viver;
esto faz ele, que x’o pode fazer,
mais outr’omem per ren non’ o faria.
E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mais sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-(s’)en seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, — mais quen non cuidaria!
E se mi Deus a mim desse poder
qual oj’el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca temeria.
regresso ao Índice

Pêro Mafaldo
Vej’eu as gentes andar revolvendo
e mudando aginha os corações
do que põen antre si as nações;
e já m’eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assi irei melhor guarecendo.
Ca vej’eu ir melhor ao mentireiro
c’ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur’ e o digo
que já mais nunca seja verdadeiro;
mais mentirei e firmarei log’al:
a quen quer’oje ben, querrei-lhe mal,
e assi guarrei como cavaleiro.
Pois que meu prez nem mia onra non crece,
por que me quígi teer à verdade,
vede’lo que farei, par cardade,
pois que vej’ o que m’assi acaece:
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
com mentira, pois com verdade dece.
regresso ao Índice

Pêro Gomes Barroso
Do que sabia nulha ren non sei,
polo mundo, que vej’assi andar;
e, quando i cuido, ei log’a cuidar,
per boa fé, o que nunca cuidei,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
Aqueste mundo, par Deus, non é tal
qual eu vi outro, non á gran sazon,
aquel desej’e esto quero mal,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E non receo mha morte por en,
E, Deus lo sabe, querria morrer,
Ca non vejo de que aja prazer,
Nen sei amigo de que diga ben,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E, se me a mim Deus quisess’atender,
per boa fé ûa pouca razon,
eu post’avia no meu coraçon
de nunca já mais neûn ben fazer,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E non daria ren por viver i
en este mundo mais do que vivi.
regresso ao Índice
|