Delfim Santos e a religião

Carteio entre Samuel Dimas e Filipe D. Santos

Samuel Dimas <samueldimas @ meo.pt> escreveu no dia terça, 18/09/2018 às 14:43:

Filipe viva,

Desculpa o incómodo, mas preciso de te fazer uma pergunta. Como definirias a posição religiosa de Delfim Santos depois de se ter afastado do Cristianismo e ter adotado o pensamento fideísta de autores como Kierkegaard e Karl Jaspers ? Teísmo fideísta, deísmo ou agnosticismo?
Ab
Samuel Dimas

Filipe Delfim Santos <arquivodelfimsantos @ gmail.com> enviada 20 de setembro de 2018 às 03:09:

Olá Samuel,

Não é incómodo nenhum, estas perguntas são sempre bem-vindas. Mas a resposta é complexa. Tentarei uma síntese:

1. Eu começaria por contestar que Delfim Santos se tenha afastado do cristianismo. Afastou-se, isso sim, da Igreja evangélica, mais por razões pessoais e familiares, e veio depois a fazer amizade com padres e religiosos católicos, também fundamentalmente por motivos pessoais (poderei explicar isto em detalhe biográfico se quiseres). Após a sua juventude, deixou de se interessar pelo debate público de ideias propriamente religiosas, mas sem que isso significasse que as desvalorizasse, talvez exatamente pelo contrário.

2. Porém a matriz do seu pensamento é sempre basilarmente cristã. Em toda a sua reflexão é possível radicar o seu pensamento na cultura cristã, sobretudo bíblica, embora sem se lhe referir diretamente. É como um húmus mental que ele nunca renega, antes pelo contrário.

3. Isto dito, o menos delfiniano que pode haver é o arregimentar-se em posições estanques e/ou em rótulos. Delfim Santos não era homem de igrejas, de partidos, de falanges filosóficas que coartassem a sua liberdade de inquirição. Para ele o pensamento está em constante evolução, parar em algum degrau dessa ascensão não faz qualquer sentido.

4. Assim sendo, ele não adotou o pensamento de ninguém, e procurou sempre o seu próprio. Porém, ao apresentar cada pensador fazia-o com simpatia pelo seu esforço, pelo que os ouvintes das suas lições tendiam muitas vezes a atribuir-lhe as posições dos filósofos de quem ele expunha as ideias, fossem eles Sócrates, Platão, Aristóteles, São Tomás, Kierkegaard, Heidegger, Jaspers, etc. Tratavase apenas de os presentificar perante os alunos, não para os emular ou para seguir ninguém, como aliás sempre explicitou.

5. Estudioso da metafísica, estava muito longe do materialismo, mecanicismo e, claro, do positivismo, neopositivismo, marxismo, etc., mas sobretudo do racionalismo redutor e empobrecedor, incapaz de abertura ao Mistério.

6. Agnóstico seria a posição mais afastada entre aquelas aqui enumeradas, e ainda mais distante da sua sensibilidade seria o ateísmo, pelo que atrás ficou dito. Deísmo está com certeza também muito longe, mas teísmo não serve para definir a sua atitude. Para ele a questão religiosa não se coloca em nenhum destes termos historicamente determinados.

7. Se eu fosse mesmo obrigado a usar um rótulo eu usaria espiritualismo, no mais alto sentido religioso da palavra. Uma religião do Espírito seria a sua, seja este Espírito entendido como o laço de união do Homem com Deus, com o Transcendente, com os outros Homens, com o Inefável ou simplesmente com o Mistério Absoluto. Ao teu dispor, fs.

Samuel Dimas <samueldimas @ meo.pt> escreveu no dia quinta, 20/09/2018 às 12:26:

Obrigado Filipe pela pronta resposta,

A minha dúvida surgiu exatamente por ter a perceção daquilo que disseste em geral. Assumi o seu afastamento do Cristanismo pelo que li da sua correspondência e não se refere apenas ao enquadramento eclesial ou religioso, mas sim às questões teológicas sobre a própria conceção de Deus. Ao espiritualismo de que falas, acerca de uma relação com o Inefável e o Mistério absoluto, a tradição filosófica e teológica dá o nome de deísmo, pois está aquém e além de uma posição confessional, nomeadamente pela recusa ou negação da historicidade de Cristo como encarnação de Deus e pela recusa de uma intervenção providencial de Deus na história ou de uma presença de Deus no homem pela ação do Espírito Santo.

A essa eventual a6tude de fidelidade à tradição religiosa cristã em termos privados que não se reflete publicamente na reflexão filosófica através de uma teologia (no sen6do aristotélico), assumindo que essas as questões são da ordem da fé (religião) e não da ordem da razão (filosofia), porque Deus é absolutamente transcendente e não pode ser conhecido nem pensado, a tradição filosófica e teológica dá o nome de teísmo fideísta. Creio que a crí6ca que Delfim Santos faz a Sampaio Bruno e a Leonardo Coimbra por terem um pensamento essencialmente teológico se situa neste âmbito da chamada teoria da dupla verdade ou cisão entre a fé e a razão.

Sim estou de acordo, não se trata de ateísmo ou de agnos6cismo, e se me disseres que Delfim nunca deixou de acreditar em Cristo, independentemente da concre6zação religiosa que essa fé assumiu em termos histórico-sociais, podemos concluir situar-se no âmbito de um teísmo fideísta. Se deixou de acreditar em Cristo como filho de Deus ou como manifestação de Deus na história, só poderá situar-se no plano deísta tal como é concebido hoje. A não ser que tenha proposto um outro termo para significar a sua relação com o divino e a transcendência, por exemplo no espetro dos gnos6cismos, o que não nos parece. Panteísta nunca será pelo seu radical dualismo ou pluralismo ontológico.

Estes rótulos são nomes que significam, mesmo que fiquem distantes do que pretendem significar. Mas não temos outra maneira para falar da realidade e mesmo que seja apenas por aproximação temos de nos socorrer deles, porque senão não nos entenderíamos e tudo seria igual a tudo, bastando calar.

Tenho estado a reler a obra atentamente, é na verdade um grande filósofo.

Abraço amigo
Samuel

Filipe Delfim Santos <arquivodelfimsantos @ gmail.com> enviada 21 de setembro de 2018 às 18:15:

Olá Samuel,

O problema com os rótulos não é meu. É que Delfim Santos é um pensador estruturalmente antirrótulo. Se estivesses a conversar com ele ao vivo verias como pouco lhe interessavam essas circunscrições limitadoras, pois o pensamento (ou reino do Espírito) é fluido, ilimitado e sem fronteiras, o que o carateriza é precisamente a Liberdade.

Podem existir milhões de nuances e as pessoas não «são», vão sendo, vão mudando de posição, não podem ser olhadas monoliticamente. Pode haver continuidade, mas existem também transmudações e até ruturas.

Mas vamos por partes, que isso é bem delfiniano: Ateísmo, Agnosticismo, Gnosticismo, Panteísmo – sim, tudo isso é inválido para caraterizar a posição de Delfim Santos. Existe, desde a formação bergsoniana recebida de Leonardo, até à sua superação hartmanniana adquirida em Berlim, uma vontade de contradição do racionalismo (filosofia de engenheiros, como lhe chamou) e seus subprodutos (neopositivismo etc.). Isto porque epocalmente ele se insere nesse momento de reação espiritualista que é a primeira metade do século XX, contra um século XIX positivista/realista. É o regresso ao romantismo por um lado, mas também o modernismo, o jungismo, tudo aquilo que denuncie e ultrapasse os limites da razão e do consciente e impugne a pobreza dos antimetafísicos.

Recorda que Delfim Santos foi, de entre TODOS os discípulos de Leonardo, o ÚNICO que em total fidelidade recusou colaborar com a cruzada racionalista e antileonardina do A. Sérgio e da Seara. Isto apesar do assédio moral desse Sérgio, das boas relações que entre eles se estabeleceram ao nível da cortesia, a até de o dito AS. o citar extensamente na Seara. Apesar também de todos os seus colegas terem caído no canto da sereia (Marinhos, Santanas, Casais, Agostinhos e quejandos). Se a tudo isto somares que por princípio Delfim Santos nunca recusava colaboração para qualquer revista que fosse, viesse de onde viesse, então basta que leias as cartas para poderes entender o alcance e a radicalidade dessa recusa, que é uma das posições públicas mais estruturantes dele.

Espiritualismo – Ele subscreveria totalmente «presença de Deus no homem pela ação do Espírito» mas sem acrescentar-lhe o «Santo», pois isso já é muito delimitado religiosamente, digamos que são termos muito circunscritos. O Espírito tout court, o Geist dos filósofos é bem mais amplo do que o «Espírito Santo» enquanto persona da divindade cristã.

Cristo, Salvador da Humanidade? – Aqui eu poria a questão assim: numa linha quase socrática e certamente humanista, o centro da filosofia de Delfim Santos é o Homem. O que o precupa é a existência humana, as suas perplexidades e angústias, as suas glórias e misérias. Por isso ele recusa centralidade a quaisquer questões sobre Deus, sobre o Homem-Deus, ou sobre o Deus-Homem, já que as suas grandes interrogações versam o Homem-Homem.

Será que se pode dizer que é uma filosofia pósteológica? SIM. A primeira em Portugal que não é teológica e muito menos antiteológica, mas pósteológica porque critica essa adscrição em Bruno e em Leonardo mas não por animadversão, e simplesmente porque o seu foco, filho de novos desafios e de novos tempos, é já outro. Pós-cristã? NÃO. E não porque o cristianismo constitui o ADN sempre inscrustrado na sua reflexão antropológica e cultural. Ele nunca renegou a cultura bíblica aprendida com os protestantes, embora nesse caso o cristianismo também pudesse estar presente pela negação: mas não se trata disso, ele assimilou a religião cristã, até porque esta também era humanista, ainda que de forma diferente da dos clássicos. Creio que esse é o aspeto mais importante para Delfim Santos, que valorizava igualmente o potencial ético e exortativo, estético e literário dos escritos bíblicos, que muitas vezes cita referenciandoos ou não.

Já agora, se me permites este aparte: quando eu digo que Delfim Santos reconhecia a mensagem cristã como humanista é porque o cristianismo já divinizara um Homem, aproximando o Homem de Deus com a Encarnação a um nível sacrílego para os judeus e muçulmanos, para a Transcendência Absoluta. Essa proximidade de Deus ao Homem resultou do diálogo do cristianismo com a filosofia helénica, mas também daquele que a nova religião entabulou com as outras religiões antigas, para quem os homens eram deuses em potência, se e quando capazes de realizar o seu potencial divino (o mesmo se passa no advaita vedanta, claro). O cristianismo marca um compromisso entre a divinização dos Homens, pelos antigos, e a divinização de UM Homem na mensagem dos Evangelhos, assim gerando um caminho e exemplo, algo que o Homem pode imitar: como diz José Régio, não podes imitar Deus (e ai de nós se o tentamos, é a proposta venenosa da serpente) mas podes e deves imitar Cristo, espelho de virtudes para o Homem, ou isso mesmo que os ingleses chamaram «the manliness of Christ».

Questões ociosas – o debate sobre a historicidade vs. simbolicidade de Cristo que, centrado na História, interessa mais à história do que à religião, ao contrário do que muitos pensadores religiosos pensam; o debate sobre a humanidade vs. humanidade/divindade de Cristo, já esgotado em posições autojustificativas que cada um toma segundo lhe apraz. Como muito bem dizes, ao filósofo e ao religioso deve interessar-lhes Cristo, e obviamente não Jesus. Cristo é em si mesmo uma proposição soteriológica. Não estou eu de acordo em que religião e fé sejam a mesma coisa «da ordem da fé (religião)», mas o que eu penso ou não penso certamente não interessa para este diálogo que versa sobre Delfim Santos.

Sempre ao teu dispor,
f.

Samuel Dimas <samueldimas @ meo.pt> 21 de setembro de 2018 às 21:54:

Obrigado Filipe,

Sim, no essencial, estou de acordo contigo. Nunca foi preocupação de Delfim Santos fazer uma teologia filosófica. Mas a sua reflexão sobre a pluralidade ontológica é um bom contributo para a metafísica atual.

Abraço,
Samuel

delfim santos e kierkegaard – 1

A Biblioteca Nacional de Portugal e a Embaixada da Dinamarca promoveram a comemoração do Bicentenário Kierkegaardiano em sessão pública celebrada ontem nas instalações da BNP:convite_kierkegaard_expo

Infelizmente, o texto original do anúncio desta realização da Biblioteca Nacional (de Portugal?), – anónimo! mas em site de uma instituição pública que ao publicá-lo se torna responsável pelo seu conteúdo -, não fazia a menor menção à receção portuguesa de Kierkegaard, na qual, do ponto de vista universitário, Delfim Santos teve primazia absoluta. Continuava pois a “boa prática”, fomentada pelas instituições do Estado, de desprezar os valores portugueses e o trabalho dos pensadores portugueses, já que para as pessoas dessas instituições estão apenas lhes interessa o que vem de fora, o resto é para se omitir piedosamente. Após este protesto, Elisabete de Sousa comunicou-me gentilmente que o texto havia sido reformulado: versão atual aqui, ou em PDF.

Acontece que, além de Delfim Santos, outros nomes exteriores à universidade, como José Marinho e Álvaro Ribeiro, ou Adolfo Casais Monteiro (que só mais tarde veio a lecionar na universidade brasileira), todos de grande destaque nas letras da época, são omitidos desta “apresentação” de gosto duvidoso. Sabendo que a citada instituição é custódia dos espólios de Delfim Santos, de José Marinho e de Adolfo Casais Monteiro (além dos de outros kierkegaardianos, como um inexplicavelmente silenciado Vergílio Ferreira) é caso para nos interrogarmos sobre a perpétua impunidade de que goza a patológica autofobia que o Estado português tem em relação à cultura nacional: nem mesmo estimam aquilo que lhes foi confiado com a expressa condição de ser por eles valorizado.

Felizmente os pensadores portugueses não foram banidos do catálogo primorosamente editado pela mesma BNP: “Um Dinamarquês Universal: Søren Kierkegaard, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2013“, com esmero gráfico a que só faltou a reprodução a cores das capas dos livros.

Três pequenos reparos: o título do texto de José Justo “Kierkegaard na Universidade de Lisboa” é pouco preciso pois ocupa-se do meritório trabalho desenvolvido nos últimos oito anos pelo Centro de Filosofia daquela instituição. Deveria ser pois “Kierkegaard no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa” para poder excluir a referência à primeira presença do filósofo da Dinamarca nessa Universidade através de Delfim Santos, leitor atento de Kierkegard e desde 1943 a trabalhar naquela casa que tão pouco o estimou e estima.

Quanto à listagem dos textos delfinianos – exibidos em cronologia inversa, do mais recente para o mais antigo – seria preferível tê-los antes elencado de acordo com a ordem pela qual foram sendo publicados. Aliás, a totalidade da bibliografia, ainda que mantendo a divisão em monografias e artigos, ganharia em ter sido apresentada por ordem cronológica – certeiramente adotada para as traduções – pois ficariam assim mais claras, a um simples relance, precedências e influências. E o índice, que felizmente não foi esquecido na edição deste catálogo, possibilitaria a busca dos autores pelo nome.

Por último, lamenta-se a ausência da data de “A Filosofia como Ontologia Fundamental” que é de 1955, tendo sido a alocução inicial do I Congresso Nacional de Filosofia organizado pelos jesuítas bracarenses e que Delfim Santos inaugurou.  Curiosamente, nesse texto ninguém (por “ninguém” aludo à redação da Revista Portuguesa de Filosofia onde o texto conheceu a sua publicação original, ao Autor se provas lhe foram dadas a rever (?) e aos editores das “Obras Completas”) corrigiu o pequeno lapso onde se dizia “Kierkegaard, cujo centenário do nascimento este ano se comemora” e que deveria ser, evidentemente, “centenário do falecimento“.

O momento marcante do evento foi a bela evocação que um ainda em forma Eduardo Lourenço fez da relação entre Kierkegaard, o seu Pai e a sua noiva, que Guilherme d’Oliveira Martins complementou, situando o lugar do próprio Lourenço na receção portuguesa do escritor dinamarquês. Sobre esta segunda geração de universitários que se ocuparam de Kierkegaard, disse-nos em conversa privada Elisabete de Sousa, que com José Justo comissariou a exposição, da responsabilidade do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e que foi a única, aliás, a referir-se a Delfim Santos ao usar da palavra durante a sessão:

“A receção delfiniana de Kierkegaard é totalmente diferente da de Lourenço e isso se deve a que Delfim Santos chegou à obra do dinamarquês por via das traduções alemãs, enquanto que para Lourenço ela lhe chegou pelas francesas. Seria fascinante um estudo da forma como essas duas línguas e culturas condicionaram as leituras feitas nesses dois momentos sucessivos”.

“É também curioso constatar que a via alemã não limitou afinal a receção delfiniana. Pelo contrário: os textos de 1933 e 1943 antecipam uma leitura já emancipada do universo luterano que ainda restringia muito as leituras alemãs, de cariz religioso, que de Kierkegaard se faziam no Entre-Guerras e durante a Guerra. Delfim Santos já apontava para um enquadramento de Kierkegaard na temática do humanismo e das filosofias da Existência, possivelmente pela influência, também nele pioneira, de Heidegger, enquadramento que, como sabemos, será a causa do enorme sucesso da obra de Kierkegaard no Pós-Guerra, nomeadamente pela releitura entusiástica da sua obra durante a voga dos existencialistas”.

O catálogo desta mostra recolhe no total 8 textos delfinianos onde Kierkegaard está presente: o segundo texto que figura no catálogo é “O Valor da Ironia” e ocupa-se mais demoradamente de Kierkegaard do que a primeira alusão feita uma década antes. É, como foi acima referido, de 1943, ano do ingresso do jovem assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e em que também invocará Kierkegaard em “Ideário Contemporâneo”, apresentando-o a par de Nietzsche como expoente da reação romântica contra as Luzes.

Existem, claro está, muito mais textos onde se encontram alusões ao pensamento kierkegaardiano – que, não sendo de referir nesta listagem, teriam lugar apenas para provar o quanto essa leitura de Kierkegaard foi constante ao longo da reflexão delfiniana: são mais de 40 as páginas das Obras Completas de Delfim Santos que referenciam o nome do dinamarquês.

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Creio ter sido da iniciativa de Elisabete de Sousa, investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, a ideia da vitrine sobre Delfim Santos. Foi ela quem me solicitou a conferência inédita de Delfim Santos sobre Kierkegaard (ainda não localizada mas que estaria no espólio de João Bénard da Costa pois fora por este solicitada em 1966 à viúva de Delfim Santos para publicação na revista que ele então dirigia, O Tempo e o Modo) e foi a ela que eu forneci a relação das espécies kierkegaardianas do catálogo da Biblioteca de Delfim Santos. Espécies entretanto por ela referenciadas na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa e devidamente recatalogadas e em alguns casos enviadas para restauro, em outros expostas na própria mostra, onde se podia comprovar a profusa marginália crítica à obra kierkegaardiana pelo filósofo português. Sobre essa marginália Elisabete de Sousa anunciou-me que estaria a preparar uma edição própria, “A kierkegaardiana de Delfim Santos“, a que se espera juntar a conferência acima referida – e para tal iniciativa tem todo o meu apoio.

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Além da vitrine sobre Delfim Santos, a exposição conta com excelentes painés didáticos sobre a Dinamarca do tempo de Søren, sobre o homem, a obra e a sua influência em outros pensadores portugueses, com destaque para o próprio Lourenço. Uma oportuna iniciativa, bem lembrada e no momento certo, unindo-se à revivescência dos estudos kierkegaardianos na Dinamarca e um pouco por toda a parte, como é habitual acontecer aquando de efemérides.

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E, como sempre, a Biblioteca Nacional, detentora de múltiplos recursos tecnológicos, não cuidou sequer de registar as palavras ontem proferidas, em mais uma demonstração da incúria com que em Portugal a cultura nacional é tratada, nomeadamente no lugar onde se conservam algumas das supremas manifestações do seu espírito. Felizmente fi-lo eu, que as cederei aos organizadores se os registos dessas alocuções me forem solicitados expressamente para publicação em livro.

Já que foi na Presença que Delfim Santos, em 1933, escreveu pela primera vez em letra de forma o nome de Kierkegaard (e que talvez tenha sido a primeira revista literária portuguesa onde ele surgiu), faltaria explorar o muito que da angústia de Kierkegaard se encontra no teatro de José Régio. Sugeri a Elisabete de Sousa a pista de “Jacob e o Anjo“. Afinal não foi Régio, também ele, alguém que “utilizara a escrita como via de superação de uma vida amorosa mal-sucedida”? – Mário de Alenquer (1911) introd. a Diário de um Sedutor, trad. de M. A., Lisboa: Clássica.

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