delfim santos e kierkegaard – 1

A Biblioteca Nacional de Portugal e a Embaixada da Dinamarca promoveram a comemoração do Bicentenário Kierkegaardiano em sessão pública celebrada ontem nas instalações da BNP:convite_kierkegaard_expo

Infelizmente, o texto original do anúncio desta realização da Biblioteca Nacional (de Portugal?), – anónimo! mas em site de uma instituição pública que ao publicá-lo se torna responsável pelo seu conteúdo -, não fazia a menor menção à receção portuguesa de Kierkegaard, na qual, do ponto de vista universitário, Delfim Santos teve primazia absoluta. Continuava pois a “boa prática”, fomentada pelas instituições do Estado, de desprezar os valores portugueses e o trabalho dos pensadores portugueses, já que para as pessoas dessas instituições estão apenas lhes interessa o que vem de fora, o resto é para se omitir piedosamente. Após este protesto, Elisabete de Sousa comunicou-me gentilmente que o texto havia sido reformulado: versão atual aqui, ou em PDF.

Acontece que, além de Delfim Santos, outros nomes exteriores à universidade, como José Marinho e Álvaro Ribeiro, ou Adolfo Casais Monteiro (que só mais tarde veio a lecionar na universidade brasileira), todos de grande destaque nas letras da época, são omitidos desta “apresentação” de gosto duvidoso. Sabendo que a citada instituição é custódia dos espólios de Delfim Santos, de José Marinho e de Adolfo Casais Monteiro (além dos de outros kierkegaardianos, como um inexplicavelmente silenciado Vergílio Ferreira) é caso para nos interrogarmos sobre a perpétua impunidade de que goza a patológica autofobia que o Estado português tem em relação à cultura nacional: nem mesmo estimam aquilo que lhes foi confiado com a expressa condição de ser por eles valorizado.

Felizmente os pensadores portugueses não foram banidos do catálogo primorosamente editado pela mesma BNP: “Um Dinamarquês Universal: Søren Kierkegaard, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2013“, com esmero gráfico a que só faltou a reprodução a cores das capas dos livros.

Três pequenos reparos: o título do texto de José Justo “Kierkegaard na Universidade de Lisboa” é pouco preciso pois ocupa-se do meritório trabalho desenvolvido nos últimos oito anos pelo Centro de Filosofia daquela instituição. Deveria ser pois “Kierkegaard no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa” para poder excluir a referência à primeira presença do filósofo da Dinamarca nessa Universidade através de Delfim Santos, leitor atento de Kierkegard e desde 1943 a trabalhar naquela casa que tão pouco o estimou e estima.

Quanto à listagem dos textos delfinianos – exibidos em cronologia inversa, do mais recente para o mais antigo – seria preferível tê-los antes elencado de acordo com a ordem pela qual foram sendo publicados. Aliás, a totalidade da bibliografia, ainda que mantendo a divisão em monografias e artigos, ganharia em ter sido apresentada por ordem cronológica – certeiramente adotada para as traduções – pois ficariam assim mais claras, a um simples relance, precedências e influências. E o índice, que felizmente não foi esquecido na edição deste catálogo, possibilitaria a busca dos autores pelo nome.

Por último, lamenta-se a ausência da data de “A Filosofia como Ontologia Fundamental” que é de 1955, tendo sido a alocução inicial do I Congresso Nacional de Filosofia organizado pelos jesuítas bracarenses e que Delfim Santos inaugurou.  Curiosamente, nesse texto ninguém (por “ninguém” aludo à redação da Revista Portuguesa de Filosofia onde o texto conheceu a sua publicação original, ao Autor se provas lhe foram dadas a rever (?) e aos editores das “Obras Completas”) corrigiu o pequeno lapso onde se dizia “Kierkegaard, cujo centenário do nascimento este ano se comemora” e que deveria ser, evidentemente, “centenário do falecimento“.

O momento marcante do evento foi a bela evocação que um ainda em forma Eduardo Lourenço fez da relação entre Kierkegaard, o seu Pai e a sua noiva, que Guilherme d’Oliveira Martins complementou, situando o lugar do próprio Lourenço na receção portuguesa do escritor dinamarquês. Sobre esta segunda geração de universitários que se ocuparam de Kierkegaard, disse-nos em conversa privada Elisabete de Sousa, que com José Justo comissariou a exposição, da responsabilidade do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e que foi a única, aliás, a referir-se a Delfim Santos ao usar da palavra durante a sessão:

“A receção delfiniana de Kierkegaard é totalmente diferente da de Lourenço e isso se deve a que Delfim Santos chegou à obra do dinamarquês por via das traduções alemãs, enquanto que para Lourenço ela lhe chegou pelas francesas. Seria fascinante um estudo da forma como essas duas línguas e culturas condicionaram as leituras feitas nesses dois momentos sucessivos”.

“É também curioso constatar que a via alemã não limitou afinal a receção delfiniana. Pelo contrário: os textos de 1933 e 1943 antecipam uma leitura já emancipada do universo luterano que ainda restringia muito as leituras alemãs, de cariz religioso, que de Kierkegaard se faziam no Entre-Guerras e durante a Guerra. Delfim Santos já apontava para um enquadramento de Kierkegaard na temática do humanismo e das filosofias da Existência, possivelmente pela influência, também nele pioneira, de Heidegger, enquadramento que, como sabemos, será a causa do enorme sucesso da obra de Kierkegaard no Pós-Guerra, nomeadamente pela releitura entusiástica da sua obra durante a voga dos existencialistas”.

O catálogo desta mostra recolhe no total 8 textos delfinianos onde Kierkegaard está presente: o segundo texto que figura no catálogo é “O Valor da Ironia” e ocupa-se mais demoradamente de Kierkegaard do que a primeira alusão feita uma década antes. É, como foi acima referido, de 1943, ano do ingresso do jovem assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e em que também invocará Kierkegaard em “Ideário Contemporâneo”, apresentando-o a par de Nietzsche como expoente da reação romântica contra as Luzes.

Existem, claro está, muito mais textos onde se encontram alusões ao pensamento kierkegaardiano – que, não sendo de referir nesta listagem, teriam lugar apenas para provar o quanto essa leitura de Kierkegaard foi constante ao longo da reflexão delfiniana: são mais de 40 as páginas das Obras Completas de Delfim Santos que referenciam o nome do dinamarquês.

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Creio ter sido da iniciativa de Elisabete de Sousa, investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, a ideia da vitrine sobre Delfim Santos. Foi ela quem me solicitou a conferência inédita de Delfim Santos sobre Kierkegaard (ainda não localizada mas que estaria no espólio de João Bénard da Costa pois fora por este solicitada em 1966 à viúva de Delfim Santos para publicação na revista que ele então dirigia, O Tempo e o Modo) e foi a ela que eu forneci a relação das espécies kierkegaardianas do catálogo da Biblioteca de Delfim Santos. Espécies entretanto por ela referenciadas na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa e devidamente recatalogadas e em alguns casos enviadas para restauro, em outros expostas na própria mostra, onde se podia comprovar a profusa marginália crítica à obra kierkegaardiana pelo filósofo português. Sobre essa marginália Elisabete de Sousa anunciou-me que estaria a preparar uma edição própria, “A kierkegaardiana de Delfim Santos“, a que se espera juntar a conferência acima referida – e para tal iniciativa tem todo o meu apoio.

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Além da vitrine sobre Delfim Santos, a exposição conta com excelentes painés didáticos sobre a Dinamarca do tempo de Søren, sobre o homem, a obra e a sua influência em outros pensadores portugueses, com destaque para o próprio Lourenço. Uma oportuna iniciativa, bem lembrada e no momento certo, unindo-se à revivescência dos estudos kierkegaardianos na Dinamarca e um pouco por toda a parte, como é habitual acontecer aquando de efemérides.

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E, como sempre, a Biblioteca Nacional, detentora de múltiplos recursos tecnológicos, não cuidou sequer de registar as palavras ontem proferidas, em mais uma demonstração da incúria com que em Portugal a cultura nacional é tratada, nomeadamente no lugar onde se conservam algumas das supremas manifestações do seu espírito. Felizmente fi-lo eu, que as cederei aos organizadores se os registos dessas alocuções me forem solicitados expressamente para publicação em livro.

Já que foi na Presença que Delfim Santos, em 1933, escreveu pela primera vez em letra de forma o nome de Kierkegaard (e que talvez tenha sido a primeira revista literária portuguesa onde ele surgiu), faltaria explorar o muito que da angústia de Kierkegaard se encontra no teatro de José Régio. Sugeri a Elisabete de Sousa a pista de “Jacob e o Anjo“. Afinal não foi Régio, também ele, alguém que “utilizara a escrita como via de superação de uma vida amorosa mal-sucedida”? – Mário de Alenquer (1911) introd. a Diário de um Sedutor, trad. de M. A., Lisboa: Clássica.

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sai o primeiro número da revista de estudos delfinianos – DELFIM SANTOS STUDIES

nova revista internacional de estudos delfinianos saiu em abril de 2013.

Está disponível em: http://www.delfimsantos.com/dss

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Delfim Santos Studies, Revista de Estudos Delfinianos

An international multidisciplinary journal devoted to the study of History, Philosophy, Education, Psychology, Literature, Biography and other matters related to the Portuguese Golden Generation.

ISSN 2182-5653 (printed)

2182-5661 (online) – https://www.delfimsantos.net/dss

Publisher: Arquivo Delfim Santos, Lisbon, Portugal.

Editor-in-Chief: F. Delfim Santos (New Zealand).

Associate Editors: Friedrich Stadler (Österreich), Nuno Fidelino de Figueiredo (Brazil).

Email: revista@delfimsantos.net

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ANO 1 – nº 1 – 2013

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Filiações científico-institucionais dos colaboradores deste número  9

EDITORIAL

  • A Criação de uma Revista  13

ATAS DO COLÓQUIO INTERNACIONAL ’75 ANOS DA SITUAÇÃO VALORATIVA DO POSITIVISMO’

  • Crónica do Colóquio Internacional 75 anos da Situação Valorativa do Positivismo  19

Augusto Fitas: A influência da Escola de Viena em Portugal no período entre guerras  22

  1. O Círculo de Viena e Portugal  24
  2. As primeiras manifestações culturais públicas das ideias do Círculo de Viena (ou Abel Salazar, o grande divulgador) e a abordagem científico-filosófica de um matemático  28
  3. Uma tentativa de doutoramento versando as ideias do Círculo de Viena  34
  4. Notas Finais 49

Filipe D. Santos: Delfim Santos na morte do Professor Schlick  53

  1. Delfim Santos e Moritz Schlick  54
  2. Uma relação professor-aluno que correu mal  59
  3. Anatomia de um crime  63
  4. Disputas na imprensa em torno das aulas de Schlick  65
  5. O julgamento de Hans Nelböck 71
  6. A libertação de Hans Nelböck  73

José Maurício de Carvalho: Delfim Santos e o neopositivismo  82

  1. Considerações iniciais  82
  2. O problema contido em ‘Situação Valorativa do Positivismo’  85
  3. A recepção de ‘Situação Valorativa do Positivismo’ no Brasil  97
  4. 4. Considerações finais  102

Sérgio Fernandes: Filosofia da Lógica e Teoria da Verdade em Situação Valorativa do Positivismo  106

  1. Introdução 106
  2. Contexto histórico e propósito fundamental da SVP  108
  3. Limitações do neopositivismo e necessidade da metafísica 109
  4. Teoria pluralista da verdade e conceção unitária da verdade  112

José Luís Brandão da Luz: Delfim Santos e a verdade como desafio e limite do conhecimento  117

  1. Crítica à conceção metodológica da verdade  117
  2. Pensamento e realidade  121
  3. Regiões do real  124
  4. Absoluto e relativo da verdade  129

Pedro Baptista: Epistemologia e ontologia em Delfim Santos  132

Cláudia Ninhos: Aprendendo a lição alemã: bolseiros portugueses na Alemanha na ‘Época do Fascismo’  142

  1. A política cultural e científica alemã no estrangeiro  142
  2. A estratégia nacional-socialista em Portugal  146
  3. A Junta de Educação Nacional e o Instituto para a Alta Cultura, intermediários e protagonistas no relacionamento cultural luso-alemão 149
  4. Bolseiros portugueses na Alemanha nacional-socialista: o caso de Delfim Santos  152

Ignacio García Pereda & Ana Cardoso de Matos: The ‘Portuguese Forestry Community’ and Research Fellows abroad between 1915 and 1945  160

  1. Mário de Azevedo Gomes  162
  2. Joaquim Vieira Natividade  163
  3. The Portuguese students in Germany and Spain  164
  4. The action of the Portuguese bursaries  165
  5. Francisco Caldeira Cabral  168
  6. Forest engineers and the circulation of knowledge  171

Rui Silva: Quine and the Vienna Circle 175

  1. Introduction 175
  2. The analytic/synthetic distinction  177
  3. The indeterminacy of translation thesis  184
  4. The nature of observation sentences  186

CORRESPONDÊNCIA

  • Dedicatória de Joaquim Paço d’Arcos para Delfim Santos, jan. 53  196
  • Dois poemas de Poemas Imperfeitos  197
  • FOI NUMA TERRA DISTANTE, NA COSTA DA CHINA  197
  • O MEU VESTIDO DE VELUDO COM RENDAS BRANCAS  199
  • Carta de Delfim Santos para Joaquim Paço d’Arcos, 31.01.1953  200
  • Dedicatória de Joaquim Paço d’Arcos para Delfim Santos, 1956  202
  • Dedicatória de Joaquim Paço d’Arcos para Delfim Santos, 1960  203
  • Dedicatória de Joaquim Paço d’Arcos para Delfim Santos, abr. 62  204
  • Carta de Delfim Santos para Joaquim Paço d’Arcos, 07.05.1962  205
  • Dedicatória de Joaquim Paço d’Arcos para Delfim Santos, nov. 62  207
  • Eugénio Lisboa: O Contista – Joaquim Paço d’Arcos  208
  • Filipe D. Santos: Delfim Santos e Joaquim Paço d’Arcos, dois presidentes da ‘Sociedade Portuguesa de Escritores’  209
  • João Filipe Corrêa da Silva: No lançamento da ‘Correspondência de Joaquim Paço d’Arcos’  217 Sobre o espólio de Joaquim Paço d’Arcos (1908-1979) 221
  • José António Alves: Revisitando ‘A Floresta de Cimento’, de Joaquim Paço d’Arcos  226

RELEITURAS

  • Triálogo Restituído  237
  • José Sebastião e Silva: Filósofos e Matemáticos  238
  • Augusto Franco de Oliveira: Comentário a ‘Filósofos e Matemáticos’ de J. Sebastião e Silva  245
  • Vieira de Almeida: Matemáticos e Filósofos  249
  • Olga Pombo: Comentário a ‘Matemáticos e Filósofos’ de Vieira de Almeida  256
  • Delfim Santos: Filosofia e Ciência  261
  • Filipe D. Santos: Comentário a ‘Filosofia e Ciência’ de Delfim Santos 269

DOCUMENTOS

  • Delfim Santos regente da cadeira de Pedagogia e Didática  275
  • Sumários de Pedagogia e Didática  276
  • Carta de Edmundo Curvelo para Joaquim de Carvalho, 11.02.1950  277

RESENHAS

  • Rafael Gomes Filipe: Jorge de Sena /Delfim Santos – Correspondência 1943-1959  281
  • Manuel Maria de Magalhães: Elogio da Tolerância – A Escola de Braga e Delfim Santos  285
  • Fábio de Barros Silva: Meu Caro Delfim… Delfim Santos e o Brasil  296
  • Mourão Jorge: Amorim de Carvalho e Delfim Santos  300

Índice Onomástico  304

Regras de publicação na DSS / Revista de Estudos Delfinianos  309

diário do minho – resenha de ‘escola de braga: a correspondência com delfim santos’

Escola de Braga: A Correspondência com Delfim Santos
Org.: Filipe Delfim Santos / / José António Alves
Dezembro 2011

Delfim Santos (1907-1966) foi um filósofo que soube dialogar com o seu tempo – razão por que, no espólio que legou à posteridade, figura um vasto rol de missivas que recebeu de eminentes personalidades bracarenses da chamada ‘Escola de Braga’ ligadas à Faculdade de Filosofia da UCP. O volume aqui em referência reúne um elevado número dessas cartas (60), remetidas por personalidades tão ilustres como Diamantino Martins (1910-1979), Severiano Tavares
(1907-1955), José Bacelar e Oliveira (1916-1999), Lúcio Craveiro da Silva (1914-2008) e Paulo Durão (1893-1977). Estes académicos jesuítas, que recuperaram o legado do antigo Colégio das Artes e da Universidade de Évora, refundaram a “Escola de Braga’ e percorreram, com Delfim Santos, um longo e aprofundado caminho de amadurecimento filosófico-cultural nos anos de 1930 – motivo pelo qual não é de estranhar que, entre eles, se tenham estabelecido “laços” de grande afinidade intelectual, bem patentes nas cartas que este volume nos disponibiliza.

Numa excelente introdução à correspondência inclusa no livro, José António Alves dá-nos uma ampla ‘visão’ da importância que a década de 30 do século passado teve no ‘progresso da filosofia’ em Portugal, circunstância que permite ao leitor menos familiarizado com os assuntos filosóficos um melhor ‘enquadramento’ do conteúdo temático das cartas.

Muito relevante é também o posfácio de Filipe D. Santos, onde se aborda a ‘posição’ de Eduardo Lourenço sobre a organização do primeiro Congresso de Filosofia em Portugal (promovido pelos jesuítas bracarenses) e sobre a constituição da Sociedade Portuguesa de Filosofia.

M. M.

Diário do Minho 634, 22/02/2012, Suplemento Cultura

mourão jorge – o mito dos jesuítas e o impacto da ‘escola de braga’ no pensamento filosófico nacional

Filipe Delfim SANTOS e José António ALVES (org.), Escola de Braga: A correspondência com Delfim Santos, Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 2011, 142 pp.

Acabou de me chegar às mãos o livrinho organizado por Filipe Delfim Santos e José António Alves com o título Escola de Braga: A correspondência com Delfim Santos. O livro de 142 páginas foi editado pela Aletheia – Associação Cientifica e Cultural e impresso em dezembro de 2011.

Quanto à forma, o livro segue o formato habitual deste género de publicações. Uma introdução geral sobre os correspondentes e assuntos referidos na correspondência; a edição da correspondência, onde se descobrem cartas a Delfim Santos remetidas por Diamantino Martins, Severiano Tavares, José Bacelar e Oliveira, Lúcio Craveiro da Silva e Paulo Durão, com as respetivas notas para contextualização do leitor contemporâneo. Acresce ainda à publicação um posfácio, a bibliografia que reúne tudo o que se tem escrito sobre a Escola de Braga, alguns textos relevantes sobre os jesuítas e a história da ciência em Portugal e, por fim, um anexo com a publicação do texto de Delfim Santos, publicado no Diário Popular, sobre o Congresso Nacional de Filosofia de 1955.

Quando se fala de “Escola de Braga” está-se a referir ao que hoje conhecemos melhor por Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa. É a esta instituição que se dá, na história da cultura portuguesa, o nome de ‘Escola de Braga’.

A tese geral dos organizadores do livro é a de que a Escola de Braga desempenhou um papel relevante no renascimento da Filosofia em Portugal. Apresentam como argumentos: a organização do Congresso Nacional de Filosofia em 1955 e a tentativa de criação da Sociedade Portuguesa de Filosofia, mas também a organização curricular do ensino da Filosofia diferente daquela que se praticava nas universidades estatais da época, as publicações editadas pela Escola e o seu permanente desejo de diálogo com as correntes filosóficas e os filósofos contemporâneos nacionais e estrangeiros. A importância da Escola de Braga tem sido, de facto, reconhecida por diferentes historiadores nacionais e, inclusive, mereceu referência na História do Pensamento Filosófico Português coordenada pelo Prof. Pedro Calafate. No livro agora editado a maior novidade chega-nos da possibilidade de podermos conhecer, através da pena dos próprios intervenientes no processo, o modo como eles desenharam muitos dos passos que retrospetivamente se descobrem realmente relevantes para a cultura portuguesa. Julgo ser difícil ficar indiferente à leitura das cartas de Severiano Tavares ou à preciosa descrição de José Bacelar e Oliveira do seu encontro com o filósofo alemão Martin Heidegger.

A introdução faz uma síntese completa do que até ao momento se escreveu sobre a Escola de Braga e apresenta bem os principais assuntos abordados na correspondência. Nesse sentido é uma razoável porta de entrada no livro e que muito beneficiará o leitor na aproximação à correspondência. Contudo, a nosso ver, para o leitor mais informado, perde-se excessivamente em elementos históricos que são do conhecimento geral. Preferiríamos, para a nossa sensibilidade especulativa, ler no texto introdutório uma palavra mais vincada de relação entre o passado e o presente da Escola de Braga. A data da correspondência publicada remonta a um tempo da Escola bem diferente do atual. Na altura, a Escola de Braga era dirigida pelos jesuítas e os seus mestres eram jesuítas. O autor da introdução preferiu permanecer à sombra do ‘orgulho’ da história.

Por fim, ficou ainda por abordar, na Introdução, um tópico importante. A leitura dos textos de Delfim Santos pelos Bracarenses antes de ser conhecido e apresentado em Braga por Severiano Tavares. O filósofo portuense foi bem acolhido em Braga, mas apenas depois da amizade com Severiano Tavares. Antes, as impressões dos trabalhos de Delfim Santos não receberam os melhores elogios.

O posfácio do livro acaba por ser oportuno e complementar à introdução, sobretudo ao focar a importância do Congresso Nacional de Filosofia de 1955. Filipe Santos sublinha no posfácio o burburinho que a organização do Congresso, logo pelos jesuítas (!), provocou em alguns intelectuais do tempo. A notícia da carta de Eduardo Lourenço a Delfim Santos, de que o autor dá conta, sobre o Congresso que estava a ser organizado em Braga, é desse burburinho um exemplo interessante. Hoje a Companhia de Jesus em Portugal parece um pouco adormecida e, por isso, não levanta grandes problemas, mas nem sempre foi assim na história. O livro de José Eduardo Franco (2007) O Mito dos Jesuítas, Lisboa: Gradiva, trata muito bem do assunto. A Companhia de Jesus, fruto da capacidade de influência que teve sobre a cultura e os dirigentes nacionais, sempre levantou, em Portugal, muitas resistências e reticências. O receio do poder que a ordem de Inácio exercia na corte e nos ambientes intelectuais foi o principal motivo para o Marquês de Pombal muito se empenhar na expulsão dos jesuítas de Portugal e a lenda negra anti-jesuítica tem estado presente na sociedade portuguesa desde Pombal. Hoje estará adormecida porque a ordem também está mais adormecida em relação a tempo áureos passados. No entanto, esse mito parece despertar sempre que os jesuítas se movimentam de modo mais acutilante. Foi o que aconteceu em 1955 e foi certamente essa a razão de ser da carta do jovem Eduardo Lourenço. O posfácio informa que, acerca do Congresso, Eduardo Lourenço escreveu o seguinte a Delfim Santos: “Trata-se da Contrarreforma em todo o esplendor possível em 1955, trata-se de arregimentar o pensamento nacional sob uma cor única.” (p. 127). Mas, como disse, a Companhia de Jesus parece ter perdido capacidade de influência. Talvez por isso se compreenda que o Eduardo Lourenço da carta a Delfim Santos não se tenha importado de ser o mesmo que em 2003 assinou o prefácio à edição comemorativa dos 100 anos da revista Brotéria.

Concluindo: damos as boas vindas ao livro Escola de Braga: A correspondência com Delfim Santos pelas novidades históricas que nos oferece e por nos permitir a aproximação à subjetividade de várias personalidades que contribuíram com o seu trabalho para o enriquecimento da Cultura Portuguesa.

Mourão Jorge
Sociedade Portuguesa de Filosofia

Diário do Minho 28 de março de 2012