mônica fagundes e as “afinidades ideológicas”

Simpática e elogiosa a resenha de Mônica Fagundes (MF) ao meu trabalho de edição do carteio Jorge de Sena / Delfim Santos. Embora sem aprofundar, a resenhista soube ler o mais relevante desse diálogo. Mas discordo absolutamente das “afinidades estéticas e ideológicas” entre Sena e Delfim. Teria preferido que parasse no “estéticas” e que eventualmente encontrasse outras que não “ideológicas”.

Ideologia e filosofia não quadram: e se eu duvido que MF conheça a “ideologia” de Sena, que eu não sei qual possa ser, estou absolutamente certo de que Delfim Santos não teve nenhuma e que reputaria todo o prêt-a-penser como o flagelo do século XX – que substituiu as crenças religiosas pelas ideológicas sem ganho para a humanidade mas com grande perda: afinal foi por causa de “ideologias” que a Europa se suicidou coletivamente na Guerra de 39-45; foi por causa de “ideologias” que o ensino técnico, tão necessário no parecer de Delfim – parecer subscrito por Sena -, foi destruído em Portugal em 1975; foram precisamente as ideologias que em Portugal corporizaram a “mentalidade tacanha que combatia todo pensamento novo e não gregário, todo movimento autónomo” como MF refere, que sufocaram o questionamento e ostracizaram os homens incómodos.

As ideologias são precisamente a negação do dever e não só “do direito de cada homem às suas escolhas, àquilo que se chamaria a sua coerência própria, seu carácter, sua filosofia (…) sua vida como a quiser conduzir”. A este dever poderia chamar-se o dever de não ideologizar, de recusar toda a comodidade de repetir ideia alheia e sobretudo o de nunca supor ter encontrado respostas para tudo – em lugar de sempre questionar e desafiar todas as respostas.

resenha da correspondência delfim santos / jorge de sena

EPISTOLOGRAFIA: Jorge de Sena e Delfim Santos, CORRESPONDÊNCIA 1943-1959

Organização. estudo introdutório e notas de Filipe Delfim Santos, Lisboa. Guerra e Paz / 2012

É a propósito de um livro emprestado, devolvido com uma breve nota de agradecimento, que tem início a troca de cartas entre Jorge de Sena e Delfim Santos. O livro era um Wittgenstein, cuja filosofia da linguagem bem poderia servir de simbólica ponte a ligar o professor e filósofo Delfim Santos ao poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta – homem de Letras – Jorge de Sena. Neste caso, porém, é o próprio ato de emprestar que serve de mote feliz a uma amizade que se foi fazendo à volta de tertúlias literárias e reuniões culturais, afinidades estéticas e ideológicas, e de uma convivência intelectual profícua que, nos anos 1940/50, representava, por si só, atitude de resistência numa sociedade submetida à censura e ao isolamento, em que se faziam tanto mais necessários os debates, as discussões, o intercâmbio de opiniões e de textos.

Desses esforços dão testemunho os 29 documentos – entre cartas, dedicatórias, inquéritos literários e entradas de diário -, datados de 1943 a 1959, que compõem essa recolha de correspondência, enriquecida ainda por uma secção de Anexos. Esta arrola textos de não menor interesse, como reportagens publicadas no Diário de Lisboa acerca dos debates sobre Arte e Filosofia, e mais tarde Cinema, promovidos pelo Jardim Universitário de Belas-Artes (JUBA), em que Jorge de Sena e Delfim Santos participaram (ao lado de outros importantes intelectuais e artistas portugueses, como José-Augusto França, Almada Negreiros, Mário Cesariny); a «Súmula das Respostas ao Inquérito sobre André Gide», proposto por Sena e respondido por Santos (fazendo parte da correspondência o convite, a aceitação entusiasmada e as preciosas respostas); e o que ambos responderam ao «Inquérito sobre como vivem os intelectuais portugueses a sua relação com a cultura passada em Portugal», dirigido por Eduardo Lourenço.

O volume é apresentado por Mécia de Sena, viúva do escritor e grande embaixadora da sua obra, e tem organização, estudo introdutório e notas (necessárias, competentes e interessantíssimas) de Filipe Delfim Santos, filho do filósofo e responsável pelo Arquivo Delfim Santos, que, num empreendimento continuado e bem sucedido, vem divulgando seus estudos filosóficos e suas importantes e revolucionárias – embora nem sempre reconhecidas – ideias sobre a Educação, e publicando seus textos inéditos, com destaque para a correspondência que manteve com uma série de nomes da intelligentsia portuguesa. Como destaca José-Augusto França na «Nota Complementar» com que contribui para o volume: «Na primeira e incerta metade dos anos 1950 [ … ] Delfim Santos era dos raros professores da universidade portuguesa [ … ] que mereciam a consideração de um grupo esparso de intelectuais livres» (p. 75).

No carteio com Jorge de Sena, essa consideração, que toma modos de admiração e estima – «estima pessoal e intelectual» (p. 56), assegura Sena ao seu «caro Amigo e Camarada» (p. 52) -, é nítida e recíproca. E terá, parece, por motivação maior uma reconhecida necessidade de interlocução: «o encontro de Delfim Santos e Jorge de Sena deu-se por via da literatura e dos projectos e realizações de escrita acalentados por ambos» (p. 14), explica Filipe Delfim Santos em seu iluminador «Estudo Introdutório». De facto, o que as cartas trazem é a memória viva de uma efetiva partilha de textos e ideias entre duas importantes personagens da vida cultural portuguesa, numa época especialmente crítica, que tinham curiosidade, respeito e apreço pelo trabalho e pela opinião um do outro.

Sena indaga repetidamente Santos acerca de um seu prometido estudo sobre Nietzsche, que ainda em projeto lhe despertara o interesse; solicita-lhe uma cópia de sua investigação sobre O Pensamento Filosófico em Portugal e, em contrapartida, envia-lhe os primeiros livros de poesia que vai publicando – Perseguição, Coroa da Terra, Pedra Filosofal, As Evidências -, dos quais Delfim Santos será um dos primeiros leitores e comentadores atentos (ousando mesmo uma crítica negativa, embora elegante, no caso d’As Evidências, que lhe parecem «difíceis» e «não evidentes» ). Chega-Ihe também às mãos a primeira peça de Sena, O Indesejado, cujo posfácio qualifica de «magnífico» (p. 61) e no qual encontra um espaço de contato e acordo com o pensamento seniano, conforme relata na carta de 5 de dezembro de 1951:

Li-o em pleno acordo com os seus pontos de vista admiravelmente expostos. Essas páginas são uma boa mostra da sua forma de pensamento sério e profundo, que permitem proclamar o seu Autor, sem favor, como um crítico que sabe dominar com mestria os temas que aborda com subtileza e rigor dignos de admiração (p. 61-2).

A cada texto oferecido, Sena recebe de volta um comentário generoso e sincero, carta-resenha cujo valor vai sendo apreciado, como tão bem ilustra a troca de mensagens em torno da conferência – mais tarde publicada como ensaio – «A Poesia de Camões. Ensaio de Revelação da Dialéctica Camoniana», a que o meio literário reagira com silêncio e desdém.

Tendo recebido de Sena uma cópia do texto, escreve Delfim Santos, a 31 de julho de 1951: «senti o que de grandioso, pela sua conferência, a nossa geração poderia fazer pelo nosso Poeta. V. mostrou o caminho através de um ensaio dialéctico revelador de Camões» (p. 59). E responde Sena, a 6 de agosto de 1951:

Meu caro Amigo,

Cartas como a sua consolam-me da maldade com que toda a gente se tem recusado sequer a fazer a crítica ao meu trabalho sobre Camões, que julgaria sempre o grande caminho, não por ser o que eu vi, mas porque é o que lá está e era só preciso olhar – julgaria, mesmo que ninguém mo dissesse. Que V. mo tenha dito é uma consolação para fora da roda mais estreita de amigos próximos que nada chegam a dizer porque aí tudo é tácito, até a consideração; e para fora da roda mais vasta do público que nunca diz nada (p. 60).

Se não chegaram a ser amigos próximos, nem por isso desempenha Delfim Santos papel menos importante junto a Sena, como demonstra esta carta. Fora de uma roda estreita de convívio, mas destacado do público em geral, assinalado pelo respeito intelectual que lhe votava o ensaísta, era ele a voz justa e isenta, sua opinião digna de confiança e bem-vinda para alguém que em tão poucos de seus contemporâneos sentia (ou sabia) poder confiar, como desabafaria anos mais tarde – em Camões transfigurado – num poema muito conhecido que não será preciso citar.

Este consolo e incentivo de uma certa solidão compartilhada seria retribuído por Sena, em comentário a uma conferência intitulada «Formação Escolar e Formação Profissional», que, desta feita, Delfim Santos lhe envia em separata. No discurso do pensador (e Delfim Santos faz jus à palavra) da Educação, Sena vai louvar, em carta datada de 4 de março de 1953, «a segurança de um pensador que sabe ser mais importante a formação de um homem coerente com a sua própria atividade que a formação de uma coerência a impor a homens que começam por não existir» (p. 63).

Tratando da questão da formação técnica, defendida por Delfim Santos e apoiada por Sena como necessária ao aperfeiçoamento do ensino em Portugal, essas palavras ecoam, porém, se deslocadas desse contexto específico, como discurso a requerer o direito de cada homem a suas escolhas, àquilo que se chamaria a sua coerência própria, seu carácter, sua ideologia, sua filosofia, sua vida como a quiser conduzir. Ideia malograda no tempo e no meio social, político e cultural em que Jorge de Sena e Delfim Santos viveram, escreveram e trocaram cartas, formando-se ambos, cada qual no seu campo, como intelectuais constantemente frustrados e constantemente em luta contra a mentalidade tacanha que combatia todo pensamento novo e não gregário, todo movimento autónomo.

Em 1959, Sena decidiria deixar Portugal. Data de janeiro daquele ano o último registro dessa correspondência: uma dedicatória no exemplar de Fidelidade que o poeta oferece «A Delfim Santos, com a velha simpatia e a melhor camaradagem do Jorge de Sena» (p. 72). E fiéis camaradas seriam eles, distanciados, mas unidos no seu pathos comum, na sua vontade de liberdade e justiça, na sua espera de uma Pátria que pudessem reconhecer e que os reconhecesse a eles. Empresa que cabe agora às gerações seguintes, que redescobrem os seus textos, que os editam, que o divulgam.

Mônica Fagundes

Colóquio/Letra184, Lisboa, set./ dez. 2013, 230-232.

 

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Kierkegaard_1

“(…) Delfim Santos (1907–66), who started mentioning Kierkegaard regularly as early as 1933, i.e., before Casais Monteiro’s translation of The Sickness unto Death. In the essay “Dialéctica Totalista” (Presença, vol. 2, no. 39, 1933) Delfim Santos reviewed the theory of stages and the concept of liberty as action (see Obras Completas de Delfim Santos, vol. 1, Lisbon: Fundação Gulbenkian 1971, 31–38).

On the other hand, Delfim Santos’ influence was predominantly institutional; a professor at the University of Lisbon, he was, among (Leonardo) Coimbra’s disciples, the one who left an indelible presence in Philosophy and Pedagogy Studies until his death. Though he did not hold a Philosophy chair, he was the head of the Pedagogical Sciences Department for almost twenty years; this enabled him to influence various generations of graduate students who had to pass difficult entrance examinations to be admitted to teaching posts at public secondary schools. In an “In Memoriam” article, his role as professor and his philosophy (including the role of Kierkegaard in his thought) are acknowledged by eight representative personalities of his time (from editors to academy colleagues). See “Delfim Santos: um Destino Português”, O Tempo e o Modo, nos. 43–4, 1966, 1080–1101.
Delfim Santos read Kierkegaard in German, and his main philosophical interest and points of references were Heidegger and Nikolai Hartmann; he contributed regularly to general and philosophical publications and to the daily press, besides publishing four main works. From 1933 until one of his last articles in 1966, he made constant reference to Kierkegaard, though he focused especially on his role in the emergence of the philosophy of Heidegger and on his influence on existentialism. He always underscored the unique nature of Kierkegaard’s thought, accurately presenting the philosopher’s point of view on irony, subjectivity, anxiety, despair, among other key concepts, not forgetting to signal the first centenary of Kierkegaard’s death in the opening speech of the first Philosophy Congress in Portugal in 1955. Among other texts by Delfim Santos, see “The Value of Irony” (“O valor da Ironia,” 1943, in his Obras Completas, vol. 1, 349–353); “The Existential Meaning of Anxiety” (“Sentido Existencial da Angústia,” 1952, in his Obras Completas, vol. 2, 154–164); “Jaspers in Contemporary Philosophy” (“Jaspers na Filosofia Contemporânea,” in his Obras Completas, vol. 2, 268–279); “Philosophy as Fundamental Ontology” (“Filosofia como Ontologia Fundamental,” in his Obras Completas, vol. 2, 213–216)”.

Elisabete de Sousa

Texto completo aqui: ESousa_Kierkegaard_s_Intern_Reception_Southern_Central_and_Eastern_Europe

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“Até ao final dos anos quarenta (…) haverá apenas a destacar, entre o escasso número de artigos publicados até então, a circunstância de já em 1933 haver sido publicado o primeiro ensaio de Delfim Santos em que o filósofo dinamarquês surge como uma das figuras de referência. Autor de vasta bibliografia em que predomina a exposição de um pensamento existencial marcado pela fenomenologia e pela influência de N. Hartmann e M. Heidegger, Delfim Santos publicaria até ao final da sua vida outros sete artigos nos quais aborda o pensamento de Kierkegaard, sem que nenhum deles seja, contudo, de exclusiva incidência em Kierkegaard; porém, nos momentos em que com maior ou menor ênfase menciona o pensamento do filósofo, Delfim Santos atribui-lhe um papel relevante no desenvolvimento temático de cada um desses artigos, com especial incidência em tópicos como a ironia, a subjetividade, a angústia, o desespero, a influência em M. Heidegger e em E. Husserl, e nos existencialistas franceses”.

Elisabete de Sousa, Kierkegaard em Portugal, Um Dinamarquês Universal – Søren Kierkegaard, Lisboa: BNP, 10.

Sobre este resumo da relação Kierkegaard / Delfim Santos haveria a observar o seguinte: a primeira chamada de atenção de Delfim Santos para Kierkegaard sai na revista Presença em 1933 e reporta-se, sem o nomear, ao Diário de um Sedutor como exercício de análise experimental e fria do amor (que serviu durante a sessão inaugural da mostra de ontem para interessantes aproximações ao caso Ofélia de F. Pessoa). Tinha então Delfim Santos 26 anos e ainda não viajara nem sabia alemão, algo que só acontecerá em 1935, pelo que é possível que tenha usado a tradução portuguesa do Diário de 1911, de Mário de Alemquer, ou outra francesa.

Entre este texto e o ano de 1943, a que pertence “O Valor da Ironia” – segundo texto da mostra – foi esquecida a tese de doutoramento Conhecimento e Realidade, Lisboa: Imprensa Portuguesa, 1940, onde existem 3 observações importantes sobre Kierkegaard: terá sido esta a primeira tese de doutoramento portuguesa a referir-se à sua obra?

Por fim, no parágrafo de Elisabete de Sousa falta ainda a conferência de Delfim Santos sobre Kierkegaard, que está atestada documentalmente em carta de que lhe facultei cópia e que terá sido a primeira que em Portugal teve por tema o pensador dinamarquês. Um texto a recuperar.

Este pioneirismo recorrente de Delfim Santos deve-se à sua dupla inserção: mental e culturalmente viveu num tempo europeu que ele conhecera nas fontes, junto aos grandes pensadores com quem convivera e trabalhara; porém, vivencialmente debatia-se com um meio cultural português estagnado e muito desfasado do que entretanto acontecia na Filosofia, na Ciência, na Pedagogia por esse mundo fora. O eterno preço a pagar pela periferia lusitana.

Quanto ao “pensamento existencial” de Delfim Santos: seria melhor escrever que foi expositor das correntes da filosofia da Existência (e não só do Existencialismo à la mode nos anos 50) por solicitação do seu tempo e não por adesão própria, como ele mesmo teve ocasião de o dizer. Acontece que quando Delfim Santos expunha Platão davam-no como platónico, se discorria sobre Aristóteles era peripatético, se falava de Séneca já o tinham por estoico, se sobre Montaigne era cético, e assim por diante, isso se devendo, conforme os testemunhos de seus alunos, mais ao poder de sedução da sua palavra e ao seu talento de professor do que a uma qualquer adscrição que não procurava, pois a veria como limitativa da liberdade do pensamento.

Domingos Monteiro, numa alocução na Academia das Ciências, descreveu bem essa ilusão criada no público e pelo público: “Dada a variedade dos seus interesses, a simpatia por vezes manifestada por doutrinas diversas e até opostas, Delfim Santos foi sucessivamente apodado – ele que detestava os rótulos – de platónico, aristotélico, hegeliano, bergsonista, existencialista, fenomenologista e não sei que mais. É possível que em determinados momentos da sua vida ele tenha sido cada uma destas coisas, mas o que ele foi sempre, e é isto que constitui a sua verdadeira grandeza, foi ele próprio”.

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A Biblioteca Nacional de Portugal e a Embaixada da Dinamarca promoveram a comemoração do Bicentenário Kierkegaardiano em sessão pública celebrada ontem nas instalações da BNP:convite_kierkegaard_expo

Infelizmente, o texto original do anúncio desta realização da Biblioteca Nacional (de Portugal?), – anónimo! mas em site de uma instituição pública que ao publicá-lo se torna responsável pelo seu conteúdo -, não fazia a menor menção à receção portuguesa de Kierkegaard, na qual, do ponto de vista universitário, Delfim Santos teve primazia absoluta. Continuava pois a “boa prática”, fomentada pelas instituições do Estado, de desprezar os valores portugueses e o trabalho dos pensadores portugueses, já que para as pessoas dessas instituições estão apenas lhes interessa o que vem de fora, o resto é para se omitir piedosamente. Após este protesto, Elisabete de Sousa comunicou-me gentilmente que o texto havia sido reformulado: versão atual aqui, ou em PDF.

Acontece que, além de Delfim Santos, outros nomes exteriores à universidade, como José Marinho e Álvaro Ribeiro, ou Adolfo Casais Monteiro (que só mais tarde veio a lecionar na universidade brasileira), todos de grande destaque nas letras da época, são omitidos desta “apresentação” de gosto duvidoso. Sabendo que a citada instituição é custódia dos espólios de Delfim Santos, de José Marinho e de Adolfo Casais Monteiro (além dos de outros kierkegaardianos, como um inexplicavelmente silenciado Vergílio Ferreira) é caso para nos interrogarmos sobre a perpétua impunidade de que goza a patológica autofobia que o Estado português tem em relação à cultura nacional: nem mesmo estimam aquilo que lhes foi confiado com a expressa condição de ser por eles valorizado.

Felizmente os pensadores portugueses não foram banidos do catálogo primorosamente editado pela mesma BNP: “Um Dinamarquês Universal: Søren Kierkegaard, Lisboa: Biblioteca Nacional, 2013“, com esmero gráfico a que só faltou a reprodução a cores das capas dos livros.

Três pequenos reparos: o título do texto de José Justo “Kierkegaard na Universidade de Lisboa” é pouco preciso pois ocupa-se do meritório trabalho desenvolvido nos últimos oito anos pelo Centro de Filosofia daquela instituição. Deveria ser pois “Kierkegaard no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa” para poder excluir a referência à primeira presença do filósofo da Dinamarca nessa Universidade através de Delfim Santos, leitor atento de Kierkegard e desde 1943 a trabalhar naquela casa que tão pouco o estimou e estima.

Quanto à listagem dos textos delfinianos – exibidos em cronologia inversa, do mais recente para o mais antigo – seria preferível tê-los antes elencado de acordo com a ordem pela qual foram sendo publicados. Aliás, a totalidade da bibliografia, ainda que mantendo a divisão em monografias e artigos, ganharia em ter sido apresentada por ordem cronológica – certeiramente adotada para as traduções – pois ficariam assim mais claras, a um simples relance, precedências e influências. E o índice, que felizmente não foi esquecido na edição deste catálogo, possibilitaria a busca dos autores pelo nome.

Por último, lamenta-se a ausência da data de “A Filosofia como Ontologia Fundamental” que é de 1955, tendo sido a alocução inicial do I Congresso Nacional de Filosofia organizado pelos jesuítas bracarenses e que Delfim Santos inaugurou.  Curiosamente, nesse texto ninguém (por “ninguém” aludo à redação da Revista Portuguesa de Filosofia onde o texto conheceu a sua publicação original, ao Autor se provas lhe foram dadas a rever (?) e aos editores das “Obras Completas”) corrigiu o pequeno lapso onde se dizia “Kierkegaard, cujo centenário do nascimento este ano se comemora” e que deveria ser, evidentemente, “centenário do falecimento“.

O momento marcante do evento foi a bela evocação que um ainda em forma Eduardo Lourenço fez da relação entre Kierkegaard, o seu Pai e a sua noiva, que Guilherme d’Oliveira Martins complementou, situando o lugar do próprio Lourenço na receção portuguesa do escritor dinamarquês. Sobre esta segunda geração de universitários que se ocuparam de Kierkegaard, disse-nos em conversa privada Elisabete de Sousa, que com José Justo comissariou a exposição, da responsabilidade do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, e que foi a única, aliás, a referir-se a Delfim Santos ao usar da palavra durante a sessão:

“A receção delfiniana de Kierkegaard é totalmente diferente da de Lourenço e isso se deve a que Delfim Santos chegou à obra do dinamarquês por via das traduções alemãs, enquanto que para Lourenço ela lhe chegou pelas francesas. Seria fascinante um estudo da forma como essas duas línguas e culturas condicionaram as leituras feitas nesses dois momentos sucessivos”.

“É também curioso constatar que a via alemã não limitou afinal a receção delfiniana. Pelo contrário: os textos de 1933 e 1943 antecipam uma leitura já emancipada do universo luterano que ainda restringia muito as leituras alemãs, de cariz religioso, que de Kierkegaard se faziam no Entre-Guerras e durante a Guerra. Delfim Santos já apontava para um enquadramento de Kierkegaard na temática do humanismo e das filosofias da Existência, possivelmente pela influência, também nele pioneira, de Heidegger, enquadramento que, como sabemos, será a causa do enorme sucesso da obra de Kierkegaard no Pós-Guerra, nomeadamente pela releitura entusiástica da sua obra durante a voga dos existencialistas”.

O catálogo desta mostra recolhe no total 8 textos delfinianos onde Kierkegaard está presente: o segundo texto que figura no catálogo é “O Valor da Ironia” e ocupa-se mais demoradamente de Kierkegaard do que a primeira alusão feita uma década antes. É, como foi acima referido, de 1943, ano do ingresso do jovem assistente na Faculdade de Letras de Lisboa e em que também invocará Kierkegaard em “Ideário Contemporâneo”, apresentando-o a par de Nietzsche como expoente da reação romântica contra as Luzes.

Existem, claro está, muito mais textos onde se encontram alusões ao pensamento kierkegaardiano – que, não sendo de referir nesta listagem, teriam lugar apenas para provar o quanto essa leitura de Kierkegaard foi constante ao longo da reflexão delfiniana: são mais de 40 as páginas das Obras Completas de Delfim Santos que referenciam o nome do dinamarquês.

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Creio ter sido da iniciativa de Elisabete de Sousa, investigadora do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, a ideia da vitrine sobre Delfim Santos. Foi ela quem me solicitou a conferência inédita de Delfim Santos sobre Kierkegaard (ainda não localizada mas que estaria no espólio de João Bénard da Costa pois fora por este solicitada em 1966 à viúva de Delfim Santos para publicação na revista que ele então dirigia, O Tempo e o Modo) e foi a ela que eu forneci a relação das espécies kierkegaardianas do catálogo da Biblioteca de Delfim Santos. Espécies entretanto por ela referenciadas na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa e devidamente recatalogadas e em alguns casos enviadas para restauro, em outros expostas na própria mostra, onde se podia comprovar a profusa marginália crítica à obra kierkegaardiana pelo filósofo português. Sobre essa marginália Elisabete de Sousa anunciou-me que estaria a preparar uma edição própria, “A kierkegaardiana de Delfim Santos“, a que se espera juntar a conferência acima referida – e para tal iniciativa tem todo o meu apoio.

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Além da vitrine sobre Delfim Santos, a exposição conta com excelentes painés didáticos sobre a Dinamarca do tempo de Søren, sobre o homem, a obra e a sua influência em outros pensadores portugueses, com destaque para o próprio Lourenço. Uma oportuna iniciativa, bem lembrada e no momento certo, unindo-se à revivescência dos estudos kierkegaardianos na Dinamarca e um pouco por toda a parte, como é habitual acontecer aquando de efemérides.

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E, como sempre, a Biblioteca Nacional, detentora de múltiplos recursos tecnológicos, não cuidou sequer de registar as palavras ontem proferidas, em mais uma demonstração da incúria com que em Portugal a cultura nacional é tratada, nomeadamente no lugar onde se conservam algumas das supremas manifestações do seu espírito. Felizmente fi-lo eu, que as cederei aos organizadores se os registos dessas alocuções me forem solicitados expressamente para publicação em livro.

Já que foi na Presença que Delfim Santos, em 1933, escreveu pela primera vez em letra de forma o nome de Kierkegaard (e que talvez tenha sido a primeira revista literária portuguesa onde ele surgiu), faltaria explorar o muito que da angústia de Kierkegaard se encontra no teatro de José Régio. Sugeri a Elisabete de Sousa a pista de “Jacob e o Anjo“. Afinal não foi Régio, também ele, alguém que “utilizara a escrita como via de superação de uma vida amorosa mal-sucedida”? – Mário de Alenquer (1911) introd. a Diário de um Sedutor, trad. de M. A., Lisboa: Clássica.

SoerenK